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quarta-feira, 30 de abril de 2014

As lágrimas de Gaia: Mito Moderno

(Wilson Horvath)
Esta narrativa mítica veio à mente após a leitura da hipótese levantada por Freud em sua obra Totem e Tabu, em que o autor cogita a possibilidade de nos primórdios da humanidade, um bando de irmãos terem assassinado e devorado o pai[1], dando origem a sociedade totêmica[2]. E ouvindo à inspiração das Musas[3], trouxemos essa narrativa para os dias atuais, em conformidade com as reflexões de Morin sobre as problemáticas atuais. Segue a Narrativa:
Antes da existência dos deuses, as trevas envolviam toda a terra habitada, nesse cenário foi se formando, próximo ao clã, o bando dos irmãos, distante apenas dos olhos daquele que os expulsara do lar. Justamente ele, o mais admirado, querido e respeitado de toda a família, o modelo de homem da prole, havia despendido tamanha violência... contra seus próprios filhos, obrigando-os, um a um, a escolher entre a morte certeira ou ao exílio.
O bando somente se constituiu e permaneceu unido, pois os irmãos tinham em comum algo muito mais forte que os laços sanguíneos: o ódio pelo pai, esse nutrido pelo desejo de matá-lo, e, em especial decorrente do redimensionamento e da inversão do imenso amor que outrora sentiam pelo patriarca.
A guerra fora deflagrada, o confronto era inevitável e assim se sucedeu: Seguindo o plano macabro, desenhado por várias e intensas noites, os irmãos marcharam em busca do sangue de seu algoz, munidos de facões e foices, armamentos desconhecidos até então, construídos graças ao ardor da cólera corrente em suas veias e responsável pela racionalização e objetivação das ferramentas que tornariam possível concretizar as suas justas vinganças.
O macho-alfa, mal avistando o grupo de forasteiros se aproximar, correu furiosamente em sua direção; no dia em que ele banira seus descendentes de casa, seu semblante ainda expressava um resto de compaixão, o que permitira, mesmo diante daquela tragédia, a sobrevivência de seus filhos; no entanto, agora, ele só transmitia severidade e animosidade.
O pai sabia que o grupo era mais forte do que ele, todavia percebia medo em seus rostos; ele procurou afugentá-los individualmente com gestos e grunhidos, mas a raiva contida não os deixava retroceder. O bando permaneceu imóvel por bom tempo, nenhum deles tinha coragem para desferir o primeiro golpe... De repente, mergulhados em um transe coletivo, como em um estouro da boiada, os irmãos atacaram juntos e de uma só vez mataram o seu progenitor, destroçando o seu corpo em inúmeros pedaços.
Após essa horrorosidade, ocorreu outra pior, os irmãos lutaram entre si, disputando o posto paterno, por seis longos e intermináveis dias e noites; alianças e grupos opostos eram construídos e desfeitos no mesmo instante. No sétimo dia, diante dos cadáveres espalhados pelo chão, os doze últimos membros do bando perceberam o erro que cometeram ao matarem o pai e arrependidos do parricídio, selaram um pacto de paz por meio de um banquete cerimonial, em que se alimentaram dos restos mortais de seu velho progenitor.
O pai renasceu em cada um dos filhos e se tornou mais poderoso do que antes e obrigou que os filhos obedecessem as suas antigas leis e eles as cumpriram prontamente. Assim, por quarenta meses, a matança dentro do bando findou-se; estabeleceu-se a entreajuda entre os membros do clã; cada um dos irmãos se tornou responsável pela sobrevivência do outro; eles não tomaram suas irmãs como esposas e foram buscar suas mulheres em outros clãs, ora pacificamente trocavam suas irmãs por outras, ora de forma violenta raptavam mulheres de outros grupos.
No entanto, nem mesmo a memória viva do patriarca pode evitar que eles almejassem exclusivamente para si o seu mais profundo e verdadeiro amor: a sua mãe, Gaia. Nenhum dos irmãos havia compartilhado esse desejo antes, ele permanecera em segredo absoluto até aquele momento, mas diante das circunstâncias, ele pode vir à tona.
As discussões e rivalidades entre os membros do bando voltaram, eles não entraram em combate, naquela ocasião, pois a memória paterna os impedia. Então, a fim de resolver esse dilema, os irmãos pensaram, pensaram e usando exclusivamente a lógica racional chegaram a uma conclusão: eles repartiriam também a mãe em pedaços; os filhos a devorariam e, conforme ocorrera com o pai, ela renasceria e estaria presente em cada um.
No entanto, nenhum dos filhos ousou comê-la. E uma nova solução foi encontrada, eles a dilacerariam, mas mantê-la-iam viva com o auxílio da técnica oriunda da ciência moderna. Gaia foi então partida de forma violenta, mas com precisão cirúrgica, em quatro partes iguais, tendo a metade de um dos bicos do seio em cada um dos fragmentos. Os quatro irmãos maiores representando os quatro os elementos primordiais, os pontos cardeais, as estações do ano, as fases da lua, tomaram para si um pedaço do corpo materno; e dois a dois dos irmãos mais fracos se uniram aos mais fortes.
A princípio, os irmãos que receberam as porções deveriam garantir o igual acesso ao alimento manado do seio maternal aos outros; todavia isso não aconteceu, o mais forte ficou com quase todo leite. E para impedir que os outros dois irmãos se unissem contra ele, entregou para o segundo irmão em escala de força uma pequeníssima parcela da refeição sagrada e o incumbiu a vigiar o outro irmão, iludindo-o que aquele queria tomar a parte que lhe coubera. O segundo irmão acreditou e tornou-se capataz do primeiro irmão; e o terceiro o seu servo, recebendo apenas algumas gotas diluídas em água no interior de uma mamadeira, semelhante àquela parte do seio materno.
Para que não houvesse novos enfrentamentos motivados pela cobiça da parte pertencente ao outro irmão, os quatro irmãos resolveram se separar. Cada qual foi juntamente com os outros dois irmãos para um canto longínquo do planeta e formaram os quatro reinos, a saber: África, América, Eurásia, Oceania e deram origem aos quatro povos que habitam o planeta, cada qual com uma cor específica de pele: amarela, branca, negra e vermelha. O fato de morderem em diferentes partes do bico do seio fez com que suas línguas modificassem dando origem a idiomas incompreensíveis uns aos outros.
Contudo, mesmo separados, a inveja e o desejo de possuir a parte do outro nunca cessou e por causa dela originaram infinitas guerras durante o tempo, de um reino contra outro, ou no interior de um mesmo reino. O mesmo pai comum aos quatro irmãos ganhou com o passar do tempo nomes e formas diferentes, irreconhecíveis para os outros irmãos; em alguns locais, ele se tornou um deus, destruindo e subjugando os povos que veneravam as forças da natureza como deuses; em outros locais, ele permaneceu como uma ideia-força, sendo no Oeste chamado de capitalismo e no Leste, de socialismo, esse último perdeu forças e se autodestruiu. Essa diferenciação da memória do pai comum foi do mesmo modo responsável por outras infinitas guerras ou intensificou o sentimento bélico dos que guerrilhariam desejosos pela outra parte do seio matriarcal.
Os filhos não se tornaram adultos, permaneceram como crianças gigantes e obrigavam incessantemente a mãe a satisfazer todos os seus desejos e caprichos, tornando-a sua escrava. A mãe exausta, sugada de suas forças e por ter o corpo destroçado foi adoecendo, mas os filhos não percebiam suas dores, pois acreditavam que a repartição cirúrgica ocorrera de forma bem sucedida.
Entretanto com o passar do tempo, necessitando de se religar novamente, ela começou a entrar em estado de putrefação, o cheiro foi se tornando insuportável e sua aparência terrível; os filhos procuravam disfarçar com aromatizantes e maquiagem, mas com qualquer vento e chuva, ela voltava revelar o seu estado necrótico. De seus seios não saia mais leite, e sim, uma gosma e fumaça tóxica, que os filhos tragavam com mesmo prazer de quando estava mamando, mas que, ao invés, de os alimentarem, estava aos poucos os matando.



[1] Segundo Freud: “Recorrendo à cerimônia da refeição totêmica, podemos dar uma resposta. Certo dia, os irmãos expulsos se juntaram, abateram e devoraram o pai, assim terminando com a horda primeva. Unidos, ousaram fazer o que não seria possível individualmente. (Talvez um avanço cultural, o manejo de uma nova arma, tenha lhes dado um sentimento de superioridade.) O fato de haverem também devorado o morto não surpreende, tratando-se de canibais. Sem dúvida, o violento pai primevo era o modelo temido e invejado de cada um dos irmãos. No ato de devorá-lo eles realizaram a identificação como ele, e cada um apropriava-se de parte de sua força [...]” (2012, v. XI, p. 216-7).
[2] O Totem foi provavelmente o mais antigo sistema de leis da humanidade. Os membros da sociedade totêmica se identificavam com um animal, o seu Totem, e viam esse animal como seu antepassado comum. As proibições eram basicamente duas: Não matar o animal totêmico e não tomar para si mulheres pertencentes ao mesmo totem.
[3] Na mitologia grega, as Musas (em grego: Μοῦσαι) são entidades divinas responsáveis pela inspiração dos cientistas e artistas, nas suas mais variadas formas de expressões.

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