Por muito que ouçais, não compreendereis; por muito que olheis, não vereis. Pois o coração deste povo se tornou insensível, tornaram-se duros de ouvido, taparam os seus olhos, para não ver com seus olhos, não ouvir com seus ouvidos [...] (BÍBLIA, op. cit., 1995, p. 1209).
Ódio
Ódio incontrolável, pulsando pelas veias.
Líder, chefe da razão e emoção.
Ódio contido, sufocado!
Alimentado, pela repressão do mais forte.
Quer vingar, extravasar, destruir...
Sempre à espreita, procurando as brechas do superego e da
moral.
Ele sairá... ou de cara limpa, nu e cru.
Ou revestido do amor cristão; dos bons costumes; ou do
ardor revolucionário.
Sairá...! E fará alguém sofrer o que padeceu.
Sempre haverá uma mulher para apedrejar.
E pode chamá-la de puta, bruxa, bicha, maconheira,
comunista, neoliberal.
Não importa a titulação, só interessa o prazer da
explosão.
Ódio, ódio, ódio!
Até quando será só ódio?
Quem romperá?
Quem jogará... a primeira rosa?
(Wilson Horvath)
A
análise que desenvolvemos neste trabalho é exclusivamente teórica. Logo, ela
busca compreender qual a Filosofia presente nos Parâmetros Curriculares
Nacionais, como ela está articulada com a realidade e quais são os seus
objetivos. Assim, antes de iniciarmos a análise de nosso objeto de estudo, se
faz necessário um pequeno esclarecimento sobre a forma como entendemos o que
seja conceito e indicar de que maneira faremos a leitura.
O
conceito que analisaremos é eterno ou finito? Imutável ou mutável? Ele existe
por si ou foi construído? Ele está no mundo sensível, mundo da matéria ou em
uma realidade transcendente? A sua existência se limita à mente humana?
Essas
perguntas remetem às questões dos universais (quaestio de universalibus), que, embora, estejam fora de moda na
atualidade, sendo reservada a poucos especialistas que versam sobre o assunto,
estiveram presentes no cerne da reflexão filosófica, no período medieval, e a
elas foram apresentadas duas principais formas de resolução, a corrente
realista e a nominalista.
Os
conceitos, entendidos dentro da corrente realista, existem de forma real, seja
em uma realidade transcendente[1],
tal como apresenta o realismo oriundo do platonismo, seja presentes na matéria
e no mundo sensível e obtidos pelo ser humano por abstração[2], tal
como propuseram os seguidores de Aristóteles. De acordo com Japiassú e
Marcondes, o realismo é:
[...]
concepção filosófica segundo a qual existe uma realidade exterior, determinada,
autônoma, independente do conhecimento que se pode ter sobre ela. O
conhecimento verdadeiro na concepção realista, seria então a coincidência ou
correspondência entre nossos juízos e essa realidade (2001, p. 231).
A
abordagem realista deve julgar os conceitos analisados a partir de seu grau de
aproximação com esses conceitos reais. E, à medida que aqueles se assemelhassem
a eles, estará o seu grau de perfeição.
A
corrente nominalista, apresentando uma visão distinta do conceito da corrente
realista, coloca que o Universal não existe por si[3],
seja enquanto ideia perfeita e eterna, seja ideia abstrata; ele é simplesmente
um nome que se dá aos seres, um recurso linguístico para denominar um grupo de
particulares, que somente tem em comum o nome que se dá a eles. Segundo
Japiassú e Marcondes:
Nominalismo:
corrente filosófica que se origina na filosofia medieval, interpretando as
idéias gerais ou universais como não tendo nenhuma existência real, seja na
mente humana (enquanto conceitos), seja enquanto formas substanciais
(realismo), mas sendo apenas signos lingüísticos, palavras, ou seja, nomes (Ibidem, p. 196).
A
abordagem nominalista dos conceitos deve julgá-los particularmente, através da
luz de seu referencial, haja vista que eles são apenas recursos linguísticos
com a finalidade de expressar algo que não existe na realidade.
Os
conceitos, dentro do pensamento complexo, são entendidos em uma nova concepção.
O pensamento complexo parte de uma compreensão nominalista e volta a uma
realista. Os conceitos são criações humanas, porém, uma vez criados, eles
duplicam no nível da noosfera, como entes
reais, com vida própria, independentes daqueles que os criaram. Esses conceitos
se tornam modelos paradigmáticos, que condicionam a leitura de mundo.
O
seu alcance, porém, e, em especial, no mundo globalizado e complexo, não é para
toda a humanidade, restringindo o seu contorno ao grupo de criação. E é esse um
dos problemas da comunicação, pois ao comunicarmos com outros grupos, há o
choque de universais, o choque paradigmático. Segundo Morin:
Em
nível de idéias, um conhecimento comum dos mesmos fatos e dados não basta para
a compreensão mútua. Os paradigmas que determinam os modos de pensamento e as
visões de mundo […] Existem paradigmas que elucidam parcialmente mas cegam
globalmente, assim como o paradigma cognitivo que dominou o conhecimento
ocidental e impôs a separação e a redução para conhecer [...], impedindo a
concepção de um conhecimento que ligue o local ao global e o elemento ao
sistema do qual faz parte [...] (2007, p. 114).
Essa
concepção sobre o universal traz para nós uma dificuldade maior para fazermos a
investigação. Nós não podemos julgar os termos analisados por nossos conceitos,
pois o termo investigado, mesmo que apresente o mesmo nome, pode ter
significações totalmente diferentes de nosso entendimento. E conceitos com
nomes diferentes podem ter sentido semelhantes, não iguais.
Assim,
não podemos julgar termos que são iguais ou diferentes apenas pelo nome dado,
devemos cuidadosamente examinar o que esses termos querem dizer. No caso dos
Parâmetros Curriculares Nacionais, por exemplo, em que muitos termos da
linguagem marxista são usados, não podemos deduzir, por apresentarem esses
termos, que o documento objetiva a criação do estado comunista.
E
nós não podemos retirar o conceito do contexto em que ele foi construído e
analisá-lo em outro quadro para atender às expectativas de nosso referencial
teórico. O conceito somente tem significado no contexto em que foi produzido.
De acordo com Morin:
Começarei
pela idéia de que toda e qualquer informação tem apenas um sentido em relação a
uma situação, a um contexto. Se, por exemplo; eu disser "amo-te",
esta palavra pode ser a expressão de um apaixonado sincero e deve ser tomada
nesse sentido; mas pode ser também a farsa de um sedutor e nessa altura será
uma mentira (in: MARTINS; SILVA, 2003, p. 13).
Se observarmos o conceito de tecnologia e a sua aplicação no
ensino de Filosofia e propusermos sua análise, sob outra perspectiva, tal como:
o uso dos recursos tecnológicos pelos professores como forma de ministrarem as
suas aulas e sua relação com a aprendizagem dos alunos, nós provavelmente
chegaremos a duas conclusões: ou que a tecnologia é uma ferramenta
indispensável para o bom desempenho das aulas ou faremos uma crítica ao uso da
tecnologia em sala de aula, argumentando que Filosofia não se faz com
tecnologia, mas com reflexão, argumentação etc. Ambas as conclusões não
condizem ao que o texto diz. Essas argumentações podem ser até boas, baseadas
em vários autores, porém serão estruturadas a partir de outras premissas que
não se relacionam com o objeto de estudo.
O
maior erro sobre o conceito talvez seja a posse dele. E a partir do momento em
que uma pessoa ou uma corrente ideológica se torna proprietária do conceito,
ela o aplica onde e como lhe convém. E depois a maneira como ele foi aplicado
se torna senso comum, seja no meio popular, na militância política, seja, em
especial, na academia.
O
conceito de neoliberalismo é um exemplo crasso desse processo. Talvez haja
quase que um consenso em definir esse sistema como a ausência ou a redução do
Estado sobre as questões que se relacionam à economia. Porém uma vez
estabelecido, esse conceito é usado para classificar qualquer pessoa que pense
diferente, como neoliberal. O mesmo ocorre com as correntes de pensamento que
não se encaixem nos ditames do pesquisador e até em políticas econômicas, que
apresentam uma ação governamental contrária à definição consensual de
neoliberalismo, tal como os ocorridos nos Estados Unidos da América, com o New Deal, entre 1933 e 1937, sob o
governo do Presidente Franklin Roosevelt, e as políticas econômicas do pós
Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945). Em ambos os casos os governos pregaram,
propuseram e fizeram investimentos maciços na infraestrutura, quando a
economia, os preços dos produtos, a produção, o trabalho e o salário foram
controlados diretamente pelo Estado.
Também
não podemos reduzir o objeto a um ponto que é contrário ao nosso modo de pensar,
nem exaltar uma parte com que concordamos sobre o todo do documento. Precisamos
ter em mente que nenhuma teoria é perfeita, inclusive a nossa; se alguma o
fosse, nós não necessitaríamos mais de Filosofia e teríamos um plano dogmático
para seguir. Segundo Morin:
[...] O
princípio de redução, que reduz um todo complexo a um dos seus componentes, que
tira do contexto, produz a incompreensão de tudo aquilo que é global e
fundamental. O princípio de disjunção alia-se ao princípio de redução para
impedir a concepção dos vínculos e da solidariedade entre os elementos de uma
realidade complexa, produzindo igualmente a invisibilidade do global e do fundamental
[...] (Ibidem, p. 114).
E,
por fim, analisamos o nosso objeto de estudo sem termos a posse da verdade.
Assim, não podemos dizer se o nosso objeto de estudo está certo ou errado, nem
que seu desenrolar caminhará para um futuro melhor ou pior do que o momento
presente. Nas palavras de Morin:
Não
existe teste prévio para reconhecer a boa e a má informação, a verídica e a
falsa. Saber ler, ver, discernir, requer um difícil e aleatório esforço de
decifração, não uma qualidade de verificação como a dos aparelhos que detectam
o dinheiro falso (1996, p. 41).
Ao
procurarmos os erros dos outros, acreditamos que estamos corretos. E
estabelecemos uma visão maniqueísta de mundo, dividindo-o entre o bem e o mal.
E, nessa perspectiva, nós alienamos a maldade, as falhas e os erros aos outros
e nos apossamos de suas qualidades e acertos. De acordo com Morin: “A moral não
complexa obedece a um código binário bem/mal, justo/injusto. A ética complexa aceita
que o bem possa conter um mal, o mal um bem, o justo o injusto, o injusto o
justo” (2007, p. 58).
O
maniqueísmo, por exemplo, foi um dos grandes responsáveis pelas guerras locais,
ocorridas durante a Guerra Fria (1947 – 1991), salvo talvez as guerras de
descolonização. As duas grandes potências maximalizaram as disputas locais ou
usaram o estopim do conflito, entre outros motivos, para venderem armas; cada
uma para um lado da disputa e para aumentar sua área de influência política. E
as populações, em especial os pobres, se matavam entre si, em nome de projetos
ideológicos, que, na maioria das vezes, não condiziam com sua realidade e com
seu modo de pensar.
O
maniqueísmo impulsionou o atentado de 11 de setembro de 2001 e justificou a
retaliação estadunidense contra o Afeganistão; em ambos os casos houve mortes de
pessoas que nada tinham com a guerra, além de crianças, idosos e doentes. As
pessoas do “bem” guerreiam contra as do “mal”. Eles queimaram as bruxas, na
Inquisição, torturaram e mataram os subversivos, na ditadura militar;
assassinaram os que eram contrários à Revolução Socialista. A humanidade já
derramou muito sangue em nome do bem! Está na hora de cessarmos as sangrias!
Nós,
porém, podemos dialogar com nosso objeto de pesquisa, entender o que ele quer
dizer, analisando e demonstrando aquilo que escapou às leituras e apontar as possíveis
consequências disso, embora não tenhamos certezas de que seu desenrolar
caminhará para o fim que alertamos. E, nesse diálogo, também podemos reforçar
alguns pontos apresentados por nosso objeto e mostrar a sua importância para a
construção da Terra-Pátria.
Dessa
forma, acreditamos que estabelecemos com os Parâmetros uma ação baseada na
política de civilização, com respeito às diferenças, convidando-os e sendo
convidado por eles para caminharmos juntos. E, se nossa análise estiver falha,
comprometida e corrompida, ao menos que ela nos ajude a romper a relação de
maniqueísmo. E se assim for, mesmo sem apresentarmos conhecimentos acadêmicos,
que possamos encarnar a ideia-força da ética da solidariedade.
Todo conhecimento pode ser posto a
serviço da manipulação, mas o pensamento complexo conduz a uma ética da
solidariedade e da não-coerção […], podemos imaginar que uma ciência que traga
possibilidades de autoconhecimento abra-se para a solidariedade cósmica, não
desintegre o rosto dos seres e dos entes, reconheça o mistério e, todas as
coisas, poderia estabelecer um princípio de ação que não ordene, mas organize,
não manipule, mas comunique, não dirija, mas estimule (Ibidem, p. 63).
A
análise que faremos neste capítulo se divide em quatro blocos. No primeiro,
falaremos como o documento entende “Competência”; no segundo, apresentamos a
maneira como é proposta a mudança e a transformação social e os limites dessa
perspectiva; no terceiro, apresentaremos a posição dos Parâmetros em relação ao
neoliberalismo e os limites dessa visão; no quarto, falaremos sobre a ideia de
Filosofia e a maneira como o documento orienta o seu ensino; e por fim
apresentaremos a conclusão deste capítulo.
A
educação, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais, apresenta, dentre seus
objetivos, a formação de competências e habilidades, que estão relacionadas com
o desenvolvimento cognitivo, sócio-afetivo e psicomotor. O trabalho dessas
competências e habilidades constitui um princípio de caráter epistemológico
referido ao pilar “aprender a conhecer”. E sua ausência dificulta a
continuidade dos estudos e o preparo para a vida em sociedade. De acordo com o
texto:
A
ausência de tais competências implica limites à ação do indivíduo, impedindo-o
de prosseguir em seus estudos na área e de se preparar adequadamente para a
vida em sociedade. São, portanto, indicações genéricas que devem apoiar as
escolas e os professores na montagem de seus currículos e na proposição de
atividades, projetos e programas de estudo ou disciplinas, através das quais
serão desenvolvidas pelos estudantes (BRASIL, 2000b, p.11).
As
competências não pretendem substituir os conteúdos presentes no currículo; pelo
contrário, ao falar de competências, se pretende dar um novo enfoque à
organização curricular. Os conteúdos são os meios a serem usados para a
formação das competências e habilidades a fim de que os alunos saibam
reconstruir, resignificar o conhecimento dado e aplicá-lo em outras situações
do seu dia a dia. Por isso, os conteúdos programáticos devem ser articulados,
selecionados, recortados para que sua presença não seja apenas uma forma de
memorização, mas promovam a reflexão e a crítica.
As
competências e habilidades estão relacionadas com o saber fazer bem algo, ou seja, fazê-lo de forma correta e positiva
tanto para o autor como para os quais se destina a sua obra. E o saber fazer
bem em educação está vinculado a conhecer bem o que se estuda, porém, não basta
conhecer profundamente o conteúdo, os alunos devem saber apropriar e usar o
conhecimento Segundo Rios:
Afirmo
que o saber fazer bem tem uma dimensão técnica, a do saber e do saber fazer,
isto é, do domínio dos conteúdos de que o sujeito necessita para desempenhar o
seu papel, aquilo que se requer dele socialmente, articulando com o domínio das
técnicas, das estratégias que permitam que ele, digamos, “dê conta de seu
recado”, em seu trabalho. Mas é preciso saber bem, saber fazer bem, e o que me
parece nuclear nesta expressão é esse pequeno termo – “bem” – porque ele
indicará tanto a dimensão técnica – “eu sei bem geografia”, portanto tenho um
conhecimento que me permite identificar istmos e penínsulas, distinguir
planaltos de planícies, ou “eu sei fazer bem tricô”, isto é, domino bem certos
recursos, consigo manejar as agulhas e executar certas receitas etc. – quanto à
dimensão política –; eu faço bem o meu trabalho de geografia ou meu trabalho de
tricoteira, isto é, vou ao encontro daquilo que é desejável, que está
estabelecido valorativamente com relação à minha atuação (2011, p. 59).
O
Fazer, na sociedade, remete à atuação política e o Bem à dimensão ética da
ação. Os Parâmetros Curriculares Nacionais objetivam o desenvolvimento das
competências e habilidades visando ao preparo ético dos alunos para o exercício
da cidadania, a fim de que atuem dentro do jogo político, os alunos, como
cidadãos, saibam defender, confrontar e aplicar suas ideias no governo da polis[4].
Assim, as competências e habilidades devem levar o conhecimento estudado, em
sala de aula, para a sociedade. De acordo com Rios:
A ideia
de bem parece-me significativa na definição da competência, porque ela aponta
para um valor que não tem apenas um caráter moral. Ele não se desvincula dos
aspectos técnicos nem dos aspectos políticos da atuação do educador. É nessa
medida que se pode compreender [...] a ética como mediação. Porque ela está
presente na definição e na organização do saber que será veiculado na
instituição escolar, e, ao mesmo tempo, na direção que será dada a esse saber
na sociedade (Ibidem, 59-60).
Saviani,
em uma perspectiva gramsciana[5],
afirma que não é possível concretizar uma educação transformadora sem pensarmos
em competência. E uma abordagem que a desconsidera, esvazia a contribuição da
educação para a sociedade. A competência está relacionada com o saber fazer,
que Saviani classifica como compromisso técnico[6]; e
esse está relacionado com o compromisso político transformador. As competências
ou o saber fazer são uma das condições para alterar politicamente a hegemonia
presente na sociedade. Segundo o Pedagogo: “[...] Ora, não se faz política sem
competência e não existe técnica sem compromisso; além disso, a política é
também uma questão técnica e o compromisso sem competência é descompromisso [...]”
(2008, p. 53).
Morin
diz que a competência democrática foi esvaziada pela forma atual de
conhecimento, que privilegia o conhecimento técnico[7]-científico,
fragmentado. Os cidadãos perdem sua competência em decidir sobre os assuntos
políticos à medida que se fecham nessa forma de conhecimento especializado. Desse
modo, a competência política fica reservada a poucos especialistas em política.
Segundo o autor:
O saber
tornou-se cada vez mais esotérico (acessível somente aos especialistas) e
anônimo (quantitativo e formalizado). O conhecimento técnico está igualmente
reservado aos experts, [...] Em tais
condições, o cidadão perde o direito ao conhecimento. Tem o direito de adquirir
um saber especializado com estudos ad hoc[8],
mas é despojado, enquanto cidadão, de qualquer ponto de vista globalizante ou
pertinente. [...] Quanto mais técnica torna-se a política, mais regride a
competência democrática (2003, p. 18).
Para
que haja uma democracia se faz necessária a participação do povo; porém está
embutido nas manobras políticas, que deslocaram os cidadãos das decisões
políticas, o não conhecimento dos processos regentes da política. Por isso,
para que haja uma nova forma de fazer política, se faz necessária uma democratização
dos conhecimentos e das competências. Segundo Morin: “Não existe política
imediata a adotar. Há necessidade de uma tomada de consciência da urgência em
trabalhar por uma democracia cognitiva” (2007, p. 152-3).
Morin
(2003, passim) propõe a formação de
policompetências, ou seja, vários conhecimentos ao pesquisador para que ele
possa compreender e julgar os fenômenos. Nós podemos aplicar essas
policompetências no entendimento de política, a fim de que elas norteiem a
atuação dos cidadãos no atual mundo complexificado.
Os
Parâmetros Curriculares Nacionais, ao proporem as competências e habilidades,
entendidas como o saber fazer ou o fazer bem algo, estão em acordo com as
propostas do pensamento complexo. Porém apenas o conceito por si só não basta,
nós devemos agora examinar a lógica interna das competências e habilidades
propostas pelo documento e analisar se elas realmente abrem perspectivas para a
participação dos alunos na vida política e de forma ética.
Em um
rio não se pode entrar duas vezes no mesmo [...] nem substância mortal tocar
duas vezes na mesma condição; mas pela intensidade e rapidez da mudança
dispersa e de novo reúne (ou melhor, nem mesmo de novo nem depois, mas ao mesmo
tempo) compõe-se e desiste, aproxima-se e afasta-se (Heráclito, 1989, p. 88).
A ideia de uma realidade petrificada nos foi
transmitida desde o período colonial em que a coroa portuguesa mudou
drasticamente a organização social dos povos que aqui viviam e impôs um novo modelo
de organização, esse com a pretensão de ser estático.
Os militares temerosos de uma mudança na
ordem social, do capitalismo para o socialismo, com o apoio da elite brasileira
e do governo estadunidense, impuseram a ditadura militar e cometeram todos os
tipos de atrocidades contra a vida humana, em nome da ordem.
Os aparelhos ideológicos atuais insistem em
manter presente no imaginário brasileiro a ideia de uma realidade petrificada,
sem mudanças sociais, permitindo apenas mudanças pessoais, imanentes à
estrutura capitalista ou se utilizam de uma concepção de dialética
pré-determinada, com o fim da antítese, através de propagandas diretas ou
subliminares, nas quais o modelo burguês de consumo é o paraíso terrestre.
A
concepção de uma dialética limitada, conforme fizeram algumas concepções mecanicistas
da dialética hegeliana e da marxista, foi apropriada pelo pensamento
neoliberal, que se apoiou nesse conceito para chegar à conclusão do fim da
história. Assim, se houve para os ideólogos neoliberais, ao longo da história
humana, o movimento e a superação, com guerras e destruições, ele se encerraria
com a democracia liberal, pois ela poria fim aos conflitos. De acordo com
Fukuyama:
Tanto
para Hegel quanto para Marx a evolução das sociedades humanas não era
ilimitada. Mas terminaria quando a humanidade alcançasse uma forma de sociedade
que pudesse satisfazer suas aspirações mais profundas e fundamentais. Desse
modo, os dois autores previam o ‘fim da História’. Para Hegel seria o estado
liberal, enquanto para Marx seria a sociedade comunista (1992, p. 12).
A concepção dos Parâmetros Curriculares
Nacionais contra a ideia de uma realidade estática propõe que o ensino forme e
desenvolva competências e habilidades a fim de que os alunos compreendam e
saibam atuar em um mundo em constante mudança. Segundo o documento:
A
compreensão dos processos de constituição e transformação das sociedades
implica a relativização do tempo presente, evitando que se caia na
“presentificação” absoluta, que gera tanto o descompromisso com os processos
sociais, quanto a desesperança diante do que nos foge ao controle [...]
(BRASIL, 2000b, p. 13).
A história, na visão do documento, está em
constante mudança e transformação e é movida pelas forças existentes no momento
presente que a faz seguir um caminho direcionado; porém esse caminho não é
seguro nem determinado, ele sofre rupturas e transformações, que o fazem
adquirir novos rumos. Assim, as competências pretendem evitar a descrença presente
em nossa sociedade, quanto às possibilidades de mudanças. Segundo o texto:
A
consciência histórica está presente na perspectiva da continuidade e da
transformação, do processo temporal direcional, porém fracionado por rupturas e novas possibilidades. A ação autônoma e
refletida sobre a realidade requer clareza quanto aos processos sociais e
históricos, evitando o imobilismo cético
ou inseguro diante de novas situações. (Ibidem,
p. 15; grifo nosso).
O
pensamento complexo insiste em mostrar que a realidade não é estática, mas que
está em movimento permanente e nos é impossível determiná-lo, pois não temos
uma total clarividência do momento presente e há na realidade, em estado
embrionário, forças que podem se desenvolver no futuro e, por ora, são imperceptíveis
aos nossos olhos. Estar preparado para o movimento e para as incertezas que ele
trará exige mudanças em nosso comportamento e em nosso modo de pensar,
abrindo-nos para as estratégias. Segundo Morin:
A
fórmula do poeta grego Eurípedes, que data de vinte e cinco séculos, nunca foi
tão atual: “O esperado não se cumpre, e ao inesperado um deus abre o caminho”.
O abandono das concepções deterministas da história humana que acreditavam
poder predizer nosso futuro, o estudo dos grandes acontecimentos e desastres de
nosso século, todos inesperados, o caráter doravante desconhecido da aventura
humana devem-nos incitar a preparar as mentes para esperar o inesperado, para
enfrentá-lo. É necessário que todos os que se ocupam da educação constituam a
vanguarda ante a incerteza de nossos tempos (2000, p. 15).
A
realidade, em constante devir, se molda e se renova constantemente. Uma das
tarefas da educação é preparar as pessoas para essas mudanças a fim de que saibam
trabalhar em favor delas e com elas. Essas mudanças modificam tanto o nosso
modo de pensar como o de agir.
A
infraestrutura é a base econômica, os meios de produção e a forma como se
organiza a produção. A superestrutura é a ideologia e o aparato ideológico
(Estado, instituições, sistema jurídico) que justifica ou gera a
infraestrutura. Para Hegel[9],
primeiro houve a ideia, que se concretizou na história, formando o aparato
ideológico e determinou a infraestrutura. Para o materialismo dialético[10], o
movimento se deu de forma contrária, ou seja, as condições da infraestrutura
determinam a superestrutura, tanto as ideias como o aparato ideológico.
O pensamento complexo une essas duas
compreensões, ou seja, não houve antes uma ideia, que, depois, se concretizou
na matéria, na vida cotidiana; mas também as ideias não surgem depois da
concretude da vida. Ambas surgem e se modificam simultaneamente, as ideias
modificam a vida concreta e essa, em um círculo recursivo, modifica também as
ideias, em um movimento constante, gerando novos paradigmas de comportamento,
organização social e pensamento. Segundo Morin:
O
paradigma apresenta uma grande ambiguidade que pode ser concebido ou num
sentido idealista, ou num sentido materialista. O sentido idealista faz do
paradigma a ideia mestra que comanda em sua toda a organização social, a qual
seria como um produto das forças organizadoras do espírito; o sentido
materialista faz do paradigma a expressão ou resultado em termos simbólicos e
ideias das realidades sociais materiais que são as relações entre as forças
produtivas (1997, p. 40).
Os
Parâmetros Curriculares Nacionais propõem que os alunos tenham competência para
atuar, de forma conjunta, tanto na infraestrutura como na superestrutura. Sobre
essa última, os alunos devem entender que as instituições sofrem transformações
conforme a ação dos cidadãos e da própria história e os cidadãos se modificam
também, conforme as mudanças dessas instituições. O documento prevê o respeito
para com essas instituições, porém os alunos não devem se contentar com o
estabelecido por elas e saber criticá-las e promover mudanças em suas
estruturas e determinações. De acordo com o texto:
As
tradições sociais, culturais, econômicas, políticas, jurídicas e filosóficas,
embora sejam referenciais, não devem
levar o indivíduo a se conformar com
o já visto, o já conhecido, o já experimentado. Antes, devem impulsioná-lo à construção de alternativas, à
reinvenção dos processos e das atitudes, à superação das resistências à ação
criativa, a fim de que, com a consciência do passado e os pés no presente, o
pensamento e a ação se projetem para o futuro (BRASIL, 2000b, p. 15; grifo
nosso).
Os
Parâmetros não propõem a criação da anarquia[11],
não negam nem desprivilegiam o Nomos;
ao contrário, entendem-no como referência. Porém as competências que se
pretendem desenvolver incentivam a recriação e a reconstrução das instituições
e pensamentos existentes. O novo surge do redimensionamento do velho.
A
superestrutura age de acordo com a infraestrutura, a qual ela formou e foi por
ela criada e, ao mesmo tempo, a superestrutura forma a estrutura e esta ajuda a
manter aquela. Assim, para que haja uma mudança estrutural na organização da
produção, é necessário que se entenda e se saiba atuar em relação aos entraves
promovidos pela infraestrutura e suas instituições. De acordo com os Parâmetros:
Entretanto,
e justamente para propiciar que tais objetivos sejam atingidos, a aprendizagem
das Ciências Humanas deve atuar na
identificação e denúncia de seus obstáculos, no entendimento de que as
práticas sociais envolvem inevitavelmente conflitos e contradições, os quais,
quando mal dimensionados, ameaçam o próprio convívio social (Ibidem, p. 14; grifo nosso).
Essa
competência está em consonância com o conceito de autonomia proposto pelo
pensamento complexo em que o sujeito autônomo, embora respeitando as leis
existentes, tem a capacidade de criticá-las, propondo alterações.
Passamos
agora para as competências que ajudam a mudar a superestrutura (sobre a
tecnologia e sobre o trabalho).
Os
Parâmetros Curriculares Nacionais não pretendem desenvolver competências que
gerem um ludismo[12]
moderno, ou seja, o medo e a repugnância à tecnologia; tampouco, encaram a
tecnologia como a salvação da humanidade. As tecnologias são vistas como
ferramentas criadas pelo ser humano a fim de resolverem problemas do dia a dia
e, ao mesmo tempo, elas geram mudanças significativas na vida daqueles que as
utilizam.
As
competências propõem que os alunos compreendam as tecnologias não apenas sob a
ótica do trabalho, mas que possam entender as transformações trazidas pelas
tecnologias à vida humana e os problemas oriundos desse processo. E possam
refletir sobre ele, no intuito de buscar soluções. Segundo o documento:
Sem
dúvida, esse processo de inovação permanente e fora de controle imediato traz
sérias consequências para a vida humana, a exemplo da inviabilidade de formas
de produção artesanais para suprir mercados amplos. A consequência mais drástica certamente é o desemprego. A
compreensão do impacto dessas tecnologias sobre o mundo do trabalho e a vida
social é urgente no contexto em que vivemos, de problemas de dimensões sempre crescentes, requerendo de todos reflexões
e soluções inovadoras (BRASIL, 2000b, 16; grifo nosso).
O
humano possibilitou a evolução da técnica e esta possibilitou a evolução do ser
humano da forma como conhecemos hoje. Assim, não há como pensar o ser humano
sem o uso da tecnologia. Porém a sua aplicação dentro do sistema capitalista de
produção trouxe consigo grandes problemas, desde o advento da revolução
industrial, sobretudo para a classe operária. A máquina, que é uma ferramenta
de produção, passou a disputar com o próprio trabalhador espaço na indústria. E
ela, por ser mais hábil e eficaz, dispensa grande parcela dos operários,
gerando desemprego e miséria. Segundo Marx e Engels:
Como
máquina, o meio de trabalho logo se torna um concorrente do próprio
trabalhador. A autovalorização do capital por meio da máquina está na razão
direta do número de trabalhadores cujas condições de existência ela destrói
[...] Onde a máquina se apodera paulatinamente de um setor da produção, produz
miséria crônica nas camadas de trabalhadores que concorrem com ela. Onde a
transição é rápida, seus efeitos são maciços e agudos. A história mundial não
oferece nenhum espetáculo mais horrendo do que a progressiva extinção dos
tecelões manuais de algodão ingleses, arrastando-se por décadas e consumando-se
finalmente em 1838. Muitos deles morreram de fome, muitos vegetaram com suas
famílias [...] (1996, v.1, t. 2, p. 48-9).
A
tecnologia, porém, na visão marxista, não deve ser vista como inimiga da
sociedade e da classe trabalhadora. Os problemas estruturais trazidos por ela
são problemas em virtude do sistema econômico, no qual vivemos. Marx e Engels,
já no final do século XIX, diziam que a classe trabalhadora deveria voltar seus
ataques não contra a máquina, mas contra o modelo de exploração em que viviam.
Segundo os filósofos alemães: “É preciso tempo e experiência até que o
trabalhador distinga a maquinaria de sua aplicação capitalista e, daí, aprenda
a transferir seus ataques do próprio meio de produção para a sua forma social
de exploração” (Ibidem, p. 47).
Os
Parâmetros não advogam em defesa de um movimento revolucionário de tomada do
poder e o controle dos meios de produção e da tecnologia pelo povo, conforme
propusera a doutrina comunista[13].
Porém abrem espaço para a reflexão e o questionamento tanto da técnica como do
atual status quo, bem como da relação
entre ambos com os atuais problemas sociais e de uma possível melhoria da
sociedade, caso a técnica fosse usada em prol da humanidade. Segundo o texto:
[...]
Os paradigmas científicos que sustentavam as bases fundamentais dessas
concepções estão sendo questionados e colocados em cheque pelas realidades que
glorificam o novo tecnológico, mas não solucionam problemas antigos, como as
desigualdades, preconceitos, dificuldades de percepção do “outro” e as diversas
formas de convivência e de estabelecimento de relações sociais [...] (BRASIL,
2000b, p. 07).
O
questionamento da tecnologia objetiva a criação de competências que ajudem os
alunos a refletir e colocar o ser humano no centro da reflexão, ou seja,
colocar a tecnologia a serviço da humanidade. Os alunos devem perceber que as
tecnologias, tão presentes em sua realidade, não são um dado natural, mas
artificial e que geram mudanças e transformações em suas vidas cotidianas e da
sociedade. E nessa perspectiva, aprendam a lidar e a conviver com elas. De
acordo com o documento:
[...]
Os conhecimentos envolvidos na área, por seu caráter intrinsecamente humanista,
agem no sentido de despir as novas tecnologias de sua aparente artificialidade
e distanciamento diante do humano. Evitam-se, com isso, os riscos de uma
naturalização das tecnologias e promove-se a culturalização de sua compreensão.
E, desta forma, assegura-se um papel novo para a aprendizagem em Ciências
Humanas na escola básica: o de humanizar o uso das novas tecnologias,
recolocando o homem no centro dos processos produtivos e sociais (Ibidem, p. 17).
As
competências propostas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais partem do
princípio de que, se os alunos compreenderem o significado da tecnologia e o
papel dela dentro da sociedade, poderão colocá-la a serviço da humanidade.
Analisemos, agora, as competências sobre o Trabalho relacionadas à técnica,
proposta pelo documento.
Os
Parâmetros apresentam uma perspectiva contrária à concepção tecnicista do
trabalho e reconhece que esse modelo educacional visava à formação da mão de
obra para atender às necessidades do mercado. Segundo o texto:
[...]
visto que até um passado recente a educação brasileira privilegiou, ora mais,
ora menos, o conhecimento do tipo técnico-científico, em detrimento das
“humanidades”, tendo em vista formar um mercado de trabalho de “especialistas e
técnicos”, numa resposta “adequada” à demanda de desenvolvimento e modernização
do mundo industrial-tecnológico. (BRASIL, 2000b, p. 44).
O
emprego da tecnologia modifica a forma como se dá o trabalho que passa, então,
a necessitar de ações em equipe, de troca e coleta de informações, de um
conhecimento não especializado, mas que privilegie a visão global e saiba
dialogar com diferentes áreas do conhecimento. Assim, uma educação voltada
apenas para a formação de especialistas seria prejudicial para as demandas do
mundo atual, sejam elas no processo de produção, sejam nas relações políticas.
O
documento entende que o atual modelo sociopolítico-econômico favorece a
exploração capitalista, a alienação do trabalho, a divisão social do trabalho,
a luta de classes, a formação da superestrutura que ajuda manter o modelo
capitalista por meio da ideologia, das políticas de Estado e do sistema
jurídico. E orienta ainda que essas questões sejam refletidas em sala de aula.
De acordo com o texto:
Com
relação aos sistemas econômicos, podem-se desenvolver reflexões que considerem
a atualidade de algumas proposições marxistas, como por exemplo, relações
sociais e condições objetivas de existência; historicidade das relações sociais
objetivas, de acordo com as condições materiais de existência, sendo o modo de
produção o limite que condiciona a estrutura social; a divisão social do
trabalho, a propriedade privada e a luta de classes como condições objetivas
que demarcam os modos-de-produção e as transformações históricas; a função
estrutural do Estado, da instância jurídica e ideológica, enquanto formas de
reprodução social; e, por fim, questões de método, tais como objetividade e crítica
e materialismo dialético (Ibidem, p.
41).
O
objetivo do estudo dos conceitos marxistas é que os alunos reconheçam a forma
como se dão as relações de trabalho e poder. E que esses conhecimentos lhes
proporcionem uma atuação mais eficaz na vida política em vista da melhoria da
sociedade, bem como das relações de trabalho e da divisão de riquezas. Por
isso, as competências sobre o trabalho são concebidas juntamente com as
competências sobre a atuação política. O documento visa formar o aluno tanto
para o trabalho como para a cidadania. De acordo com o texto:
Os
diferentes contextos do trabalho produtivo devem ser dimensionados a par da
estética da sensibilidade, no agir e fazer sobre a natureza; da política da
igualdade, na distribuição justa e equilibrada dos trabalhos e dos produtos; e
da ética da identidade, na responsabilidade social perante os mesmos processos
e produtos. A compreensão histórica e social dos processos produtivos deve
orientar as análises econômicas, políticas e jurídicas, no sentido de evitar
que percam de vista a dimensão humana e solidária necessária à convivência
pacífica, justa e equânime em sociedade (Ibidem,
p. 14).
O
conhecimento das tecnologias, cada vez mais presentes no processo de produção,
é indispensável para entender o trabalho no mundo atual. O trabalho associado à
tecnologia pode contribuir para a superação da defasagem econômica e social
vivida pelo país e reverter os problemas ocasionados pelo modo de exploração
capitalista. Segundo o texto:
Sob a
ótica do desenvolvimento econômico, o domínio ativo das tecnologias aplicáveis
aos contextos do trabalho é tarefa mais que necessária para a superação da
situação de desvantagem em que sociedades emergentes como a brasileira se
encontram. No aspecto social, a difusão do domínio dessas tecnologias, como
estratégia intrínseca à política da igualdade, propicia aos indivíduos meios
para amenizarem as consequências negativas que o próprio processo de
transformação econômica provoca (Ibidem,
p. 17).
Os
Parâmetros Curriculares Nacionais objetivam, com as competências sobre
tecnologia e trabalho, que ambas tragam conhecimentos aos alunos para que
saibam entender o contexto atual e atuar nele, a fim de promoverem um
desenvolvimento social, reverterem o atraso econômico e corrigirem as mazelas
do sistema de produção socialista.
Vejamos
agora algumas reflexões sobre essas concepções e possíveis caminhos de
complementação.
A
perspectiva do documento aproxima-se das ideias da social democracia, movimento
dissidente do socialismo ortodoxo, surgido no final do século XIX, e que teve
entre seus principais ideólogos: Eduard Bernstein (1850 – 1932) e Karl Kautsky
(1854 – 1938). Os sociais-democratas, ao invés da revolução armada, propunham a
reforma do capitalismo, por meio da ação política dos cidadãos, que geraria uma
melhor estruturação do Estado e distribuição de bens.
As
políticas públicas, por exemplo, inspiradas por essa ideologia foram programas
assistenciais e de transferência de renda, como o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) aplicado, dentre outros,
por John Kennedy – Presidente estadunidense, entre os anos de 1961 e 1963 –; o
Programa Bolsa Família, concretizado pelo Presidente Lula – Presidente
brasileiro, entre os anos de 2003 e 2010 – que unificou e expandiu os programas
assistenciais (Bolsa Escola, Auxílio Gás, Cartão Alimentação) do governo
antecedente entre outras.
A
social democracia foi duramente criticada pelos socialistas ortodoxos[14],
que defendiam a revolução como única via de transformação, pois esses
entenderam que as propostas da social democracia eram, em verdade, medidas de
manutenção do capitalismo, ao invés de contribuírem para a efetivação do
socialismo. Segundo Luxemburgo:
Num
relance, apercebemo-nos da inexatidão destas conclusões. Os fenômenos apontados
por Bernstein como sinais de adaptação do capitalismo: as fusões, o crédito, o
aperfeiçoamento dos meios de comunicação, a elevação do nível de vida da classe
operária, significam simplesmente isto: anulam, ou pelo menos atenuam, as
contradições internas da economia capitalista; impedem que se desenvolvam e se
exasperem. Assim, a desaparição das crises significa a abolição do antagonismo
entre a produção e a troca numa base capitalista; assim, a elevação do nível de
vida da classe operária, seja qual for, mesmo quando uma parte desses operários
passa a pertencer à classe média, significa atenuação do antagonismo entre o
capital e o trabalho. [...] Mas, conservando-lhe a forma capitalista, tornam
supérflua a passagem dessa produção socializada à produção socialista. [...] Só
resta, como fundamento do socialismo, a consciência de classe do proletariado.
Mas mesmo esta não reflecte no plano intelectual as cada vez mais flagrantes
contradições internas do capitalismo ou a eminência do seu desmoronamento,
porque os "factores de adaptação" impedem que se produza,
reduzindo-se portanto a um ideal, cuja força de convicção repousa nas
perfeições que se lhe atribuem (2002, on-line).
Antes
de iniciarmos a crítica ou a demonização à social democracia e sua perspectiva
de técnica e trabalho presente nas competências, propostas pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais, fazem necessárias algumas ponderações.
A
primeira: a identificação entre a social democracia e o capitalismo não foi
feita por seus membros, mas pelos socialistas ortodoxos; e, mesmo que alguns
membros posteriormente se identificaram e assumiram uma postura neoliberal, o
mesmo ocorreu com alguns membros do socialismo ortodoxo, o que não invalida
ambas as correntes teóricas. E os sociais-democratas se consideram, à sua
maneira, herdeiros e continuadores da tradição marxista. O que pode explicar o
porquê das referências ao marxismo, presentes nos Parâmetros Curriculares
Nacionais.
Segunda:
o marxismo ortodoxo, propagador do movimento revolucionário, como via de
transformação, não detinha a verdade transformadora, como os seus membros
acreditaram, pois essa vertente do socialismo falhou. Ele não conseguiu
manter-se como sistema político e econômico, nem acabou com a exploração do
proletariado, que foi subjugado pelos dirigentes do Partido Comunista.
O
marxismo talvez seja a corrente filosófica que melhor explique a maldade
existente na exploração capitalista. Assim, suas contribuições não podem ser
menosprezadas, porém elas não podem ser entendidas como dogma; se assim fossem,
contrariariam o próprio espirito original do marxismo, que se opôs aos dogmas
presentes em seu tempo.
Terceira:
a social democracia não é o neoliberalismo, haja vista que os políticos assumidos
neoliberais, – dentre eles destacamos Margaret Thatcher, primeira-ministra
britânica, entre os anos de 1979 a 1990 e Ronald Reagan, presidente
estadunidense, entre os anos de 1981 e 1989 –, teceram críticas às propostas
sociais-democráticas e estabeleceram políticas contrárias a elas, como a
diminuição ou ausência de programas sociais de distribuição de renda.
Quarta:
governos que assumiram essa ideologia política, embora não tenham realizado a
transição para o socialismo, nem acabado com a exploração capitalista,
trouxeram benefícios para a população, em especial para os mais pobres. Um
exemplo é a redução da pobreza no Brasil.
A
social democracia é, portanto, uma via de mudança e de melhoria para a
população. Ela não é a única e apresenta falhas, como toda proposta política.
Se fizermos uma leitura histórica dela, perceberemos que os políticos ligados a
ela desviaram-se muitas vezes de seu projeto inicial e nem conseguiram
concretizar uma democracia plena[15].
Mas, no campo das ideias, ela permanece como uma maneira de pensar a
transformação.
Os
Parâmetros Curriculares Nacionais, porém, ao apresentarem as competências sobre
técnica e trabalho apenas nessa perspectiva, deixam de considerar vários
elementos, que, em nosso modo de entender, são de fundamental importância para
pensarmos e articularmos uma política de civilização e uma ética complexa.
O
mito de Dédalo e Ícaro nos ajuda a compreender as consequências oriundas do uso
da tecnologia. De acordo com a lenda, Dédalo, hábil artesão, fora encarregado
de criar o labirinto do palácio do rei Minos, de Creta; este de tão bem feito,
quase impossível era encontrar a sua saída e nele se encontrava um monstro, que
se alimentava de seres humanos, o Minotauro, metade homem, metade touro.
O
Rei Minos travou uma guerra contra Atenas e, saindo vencedor, exigiu como espólio
de guerra, sete rapazes e sete moças a cada nove anos para servirem de alimento
ao Minotauro. Na terceira remessa enviada por Atenas para Creta, Teseu foi voluntariamente
entre os jovens com o objetivo de matar o monstro.
A
jovem Ariadne, filha do rei Minos, apaixonou-se por Teseu. E, com a ajuda de
Dédalo, entrega para Teseu um rolo de lã, que o herói deveria desenrolar
durante a entrada no labirinto, e uma espada. Teseu mata o Minotauro e depois
segue a lã desenrolada até encontrar a saída.
O
rei Minos descobre a ajuda dada por Dédalo a Ariadne. E, como castigo, prende o
artesão no labirinto, juntamente com o seu filho Ícaro. Dédalo consciente de que
não poderia fugir por terra nem por mar, passagens controladas pelo rei de
Creta, construiu dois pares de asas, de penas de gaivota, coladas com cera de
abelha, uma para si e outra para seu filho.
Dédalo
ensina o seu filho Ícaro a voar e o adverte para não voar muito alto, com o
risco de se aproximar do sol e danificar as asas. Então, pai e filho fogem do
labirinto, voando; porém Ícaro se encanta com o brilho do sol e avança em sua
direção; o calor solar derreteu a cera de suas asas, desprendendo as penas, o
que fez com que Ícaro caísse e morresse.
As
asas de Ícaro foram construídas para solucionar o problema que eles estavam
enfrentando, a prisão; entretanto, a mesma ferramenta que proporcionou a
libertação também gerou a morte. E o labirinto, marca da técnica de Dédalo, foi
o seu cárcere. Esse é o paradoxo da tecnologia: ela pode proporcionar uma vida
melhor, porém consigo está imbricado o nascimento de novos problemas. Segundo
Morin:
E, no
entanto, essa ciência elucidativa, enriquecedora, conquistadora e triunfante,
apresenta-nos, cada vez mais, problemas graves que se referem ao conhecimento
que produz, à ação que determina, à sociedade que transforma. Essa ciência
libertadora traz, ao mesmo tempo, possibilidades terríveis de subjugação. Esse
conhecimento vivo é o mesmo que produziu a ameaça do aniquilamento da
humanidade. Para conceber e compreender esse problema, há que acabar com a tola
alternativa da ciência "boa", que só traz benefícios, ou da ciência "má",
que só traz prejuízos. Pelo contrário, há que, desde a partida, dispor de
pensamento capaz de conceber e de compreender a ambivalência, isto é, a
complexidade intrínseca que se encontra no cerne da ciência (2005a, p. 16).
A
tecnologia é uma ferramenta, o seu uso traz vantagens, mas também desvantagens.
Assim, se nós estivéssemos vivendo em outro sistema econômico e social, o seu
uso traria outros problemas, que hoje nos são desconhecidos.
Arendt
vê no processo de automatização das fábricas, a possibilidade de libertação do
ser humano dos grilhões do trabalho. E ao contrário do que ocorreu nas épocas
precedentes, essa libertação seria para todos e não apenas para uma minoria,
pertencente à elite social. De acordo com a filósofa:
[...] o
advento da automação, que dentro de algumas décadas provavelmente esvaziará as
fábricas e libertará a humanidade do seu fardo mais antigo e mais natural, o
fardo do trabalho e da sujeição à necessidade. Mais uma vez, trata-se de um
aspecto fundamental da condição humana; mas a rebelião contra esse aspecto, o
desejo de libertação das "fadigas e penas" do trabalho é tão antigo
quanto a história de que se tem registro. Por si, a isenção do trabalho não é
novidade: já foi um dos mais arraigados privilégios de uma minoria. Neste
segundo caso, parece que o progresso científico e as conquistas da técnica
serviram apenas para a realização de algo com que todas as eras anteriores
sonharam e nenhuma pôde realizar (1981, p. 12-3).
Arendt,
porém, vê na exaltação do trabalho, característica da contemporaneidade, a
impossibilidade da construção de sociedade dedicada à vida contemplativa, pois
a sociedade que gerou as condições materiais para se libertar do trabalho, se
vê presa a ele. Segundo a filósofa:
Mas
isto é assim apenas na aparência. A era moderna trouxe consigo a glorificação
teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda a sociedade em
uma sociedade operária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos
de fadas, chega num instante em que só pode ser contraproducente. A sociedade
que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de
trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades
superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar
essa liberdade. [...] (Ibidem, 13).
A
humanidade encontra-se presa a um novo Labirinto de Minos. A humanidade
construiu as máquinas e as leis que regem o seu funcionamento tecnológico.
Doravante, a criatura se volta contra o criador e, ao invés de promover a
libertação, gera o aprisionamento e a manipulação. Segundo Morin:
Com a
tecnologia, inventamos modos de manipulação novos e muito sutis, pelos quais a
manipulação exercida sobre as coisas implica a subjugação dos homens pelas
técnicas de manipulação. Assim, fazem-se máquinas a serviço do homem e põem-se
homens a serviço das máquinas. E, finalmente, vê-se muito bem como o homem é
manipulado pela máquina e para ela, que manipula as coisas a fim de libertá-lo
(2005a, p. 109).
Os
Parâmetros Curriculares Nacionais não apresentam competências que ajudem os
alunos a compreenderem a prisão ao trabalho, a que a sociedade moderna está
submetida, nem a manipulação que a tecnologia exerce sobre o humano, em
especial, a microtecnologia e o universo virtual. Os Parâmetros sinalizam para
as influências exercidas pela tecnologia no comportamento humano e na
organização social, porém faltam-lhes algumas reflexões.
As
leis que comandam as máquinas exigem do humano que a executa obediência
irrestrita. Essas leis são inflexíveis, lógicas, determinadas. Assim vêm-nos
algumas questões: convivência permanente com as máquinas pode gerar um novo Nomos e transformar o humano em ser
robotizado? Dispositivos eletrônicos, chips, partes mecânicas do corpo estão
sendo implantadas no ser humano; a nanotecnologia, que é a tentativa de
construção de máquina do tamanho de moléculas, promete o elixir da longa vida;
os genes humanos estão sendo
manipulados em busca da perfeição, etc. E essas transformações podem tornar o sapiens um ser cibernético? Desse
processo decorrem problemas sobre o biopoder. Quem controla essas
transformações no humano? Quais são os interesses desses órgãos e pessoas?
Haverá vida humana? A liberdade humana será mantida?
O
mundo virtual e as relações estabelecidas nele exercem um impacto cada vez
maior nas pessoas; e muitas já deixam de viver a realidade ou parte dela para
viverem uma segunda vida, em um mundo fictício, o que, talvez, as prenda duas
vezes à caverna. Platão construiu a Alegoria da Caverna[16] a
fim de demonstrar para as pessoas que elas viviam em um mundo irreal e o que
elas acreditavam ser verdadeiro era, em verdade, sombras ou ilusões da
realidade. Então, elas deveriam buscar a verdade por meio da Filosofia e da
razão. Se as pessoas que vivem no mundo material estão na caverna, o que se dirá
das pessoas que vivem no virtual?
Essas
questões não são propostas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais. A concepção
permanece moderna, ou seja, se houver o conhecimento da técnica e da ciência,
será possível prever e determinar o futuro e torná-lo melhor do que o presente.
O
documento desconsidera o desenvolvimento de competências a fim de que os alunos
entendam e saibam atuar em relação às consequências negativas trazidas pela
técnica, presentes não na forma como ela é aplicada, mas imbricada na própria
lógica da ciência. Não é abordado o poder de manipulação da ciência moderna, a
destruição da natureza e os problemas oriundos dessa mentalidade e ação. As
competências são propostas para resolverem os problemas de ordem econômica e
social, dentro da visão socialdemocrata.
E
por fim, não há propostas de competências para pensarem outros modelos de
organização da sociabilidade como, por exemplo, a libertação do trabalho, como
dissera Arendt. Nesse caso, o uso da tecnologia poderia libertar a força humana
do processo de produção e o tempo livre poderia ser usado para outros fins. O
desemprego que é visto como um mal no atual modelo de organização social,
poderia ser visto como um bem, se nossa sociedade se estruturasse de outra
forma. O tempo livre e ocioso poderia, por exemplo, ser usado para a atividade
filosófica ou para a vida contemplativa[17],
tão buscada e prestigiada pelos gregos.
Precisamos
também renunciar às promessas infinitas. O humanismo ocidental nos votava a
conquista da natureza, ao infinito. A lei do progresso nos dizia que este devia
ser perseguido sem descanso e sem fim. Não havia limite ao crescimento
econômico, à inteligência humana, à razão. O homem havia se tornado para si
mesmo seu próprio infinito. Podemos hoje rejeitar esses falsos infinitos e
tomar consciência de nossa irremediável finitude. Como diz Gadamer, é preciso
“deixar de pensar a finitude como a limitação na qual nosso querer-ser infinito
fracassa, (mas) conhecer a finitude positivamente como a verdadeira lei
fundamental do dasein”. O verdadeiro infinito está além da razão, da
inteligibilidade, dos poderes do homem. Será que ele nos atravessa de lado a
lado, totalmente invisível, e se deixa apenas pressentir por poesia e música?
(MORIN; KERN, 2000, p. 172-3).
A
ausência de outras competências sobre técnica e trabalho nos Parâmetros
Curriculares Nacionais podem esvaziar o jogo e o debate político. A atuação dos
cidadãos ficaria restrita à ideologia socialdemocrata; os partidos políticos
disputariam entre si, quem seria o melhor em desempenhar essas propostas. E
outras questões passariam despercebidas ou se tornariam questões de segunda
importância.
O
documento não impede que haja o desenvolvimento de outras competências, mas ele
não preza por elas, ficando a cargo do professor esse trabalho, caso queira. E
essa ausência pode dificultar a elaboração dos currículos que objetivam a
criação de outras competências ou até mesmo causar algum impedimento nesse
sentido em alguns estabelecimentos de ensino.
3 O Neoliberalismo e Os Parâmetros Curriculares Nacionais
O
neoliberalismo é uma corrente ideológica político-econômica que, depois da
crise econômica iniciada em 2008 e que perdura até os nossos dias, talvez não
seja mais tão propagada e aspirada, haja vista que os Estados se tornaram os
grandes interventores e reguladores da economia. Essa ideia-força, porém, não
desapareceu e pode voltar depois do fim da crise, se isso um dia ocorrer.
Em
linhas gerais, o neoliberalismo prega a diminuição do poder do Estado em
relação à economia, que se desenvolveria melhor sem a tutela política e,
consequentemente, traria avanços tanto para a população, como para a nação. Os
governos deveriam assumir a função de árbitro e se limitariam a evitar os
conflitos entre cidadãos ou entre empresas, impedir a coerção de um cidadão
sobre o outro ou de uma empresa sobre o cidadão, a fim de que o indivíduo não
perca a sua liberdade de decidir o que é melhor para si, prezar pela efetivação
do que foi assinado em contrato, regular os direitos sobre a propriedade
privada e protegê-la[18].
As
pessoas, de acordo com a ideologia neoliberal, ganhariam devido à sua
capacidade produtiva. O Estado deveria promover a competição entre os cidadãos
e entre as empresas, como forma de gerar mais desenvolvimento e riquezas para
elas, o que decorreria em riquezas para a nação. Nessa forma de pensamento, se
o Estado interviesse em favor da população, ele atrapalharia a competição e
consequentemente reduziria a produção, a inovação e o crescimento[19].
A
educação, nesse contexto, tem a função de formar as pessoas para o sistema
competitivo; assim, quanto mais elas produzirem, mais elas terão benefícios
econômicos. Os educandos são encarados como capital humano e os gastos em
educação se justificam pelo mesmo motivo que se investe em máquinas, para obter
retornos financeiros, ou por parte do Estado, da empresa privada ou da família[20].
O
neoliberalismo é talvez o flagelo econômico que conquistou mais adeptos de
forma ideológica ao longo da história humana. As ideias e ações políticas,
inspiradas nessa ideologia, foram responsáveis pelo saque das riquezas das
nações e o repasse dessas para as mãos de grandes investidores, por meio de
privatizações, o que diminuiu o poder econômico dos Estados para ações sociais.
O povo viu seus direitos trabalhistas, conquistados por excessivas lutas,
durante vários anos, serem esmagados por projetos de Lei, propostos e aprovados
pelos órgãos oficiais das governanças dos diversos países, que assumiram essa
ideologia. Investimentos, ao invés de serem usados em vista do bem do povo,
foram usados para aumentar o lucro e a competividade das grandes empresas. As
grandes potências econômicas obrigaram os países pobres a assumir o discurso
neoliberal e reduzir as ações político-econômicas nacionais; porém, essas
nações se viram obrigadas a seguir à risca as determinações político-econômicas
impostas pelas grandes potências, o que aumentou ainda mais a pobreza e o nível
de dependência desses países. O neoliberalismo, portanto, nunca existiu como
sistema político-econômico, não passando de uma ideologia, no sentido mais
perverso do termo, para justificar as ações de um Estado forte na economia, em
favor dos ricos e em prejuízo dos mais pobres.
Os
Parâmetros Curriculares Nacionais apresentam uma visão contrária ao
neoliberalismo. O Estado é visto como nação soberana e a ele cabe a função de
regular a economia, a distribuição da riqueza, o sistema jurídico etc. E o
documento frisa que o Estado faz isso, muitas vezes, de forma desigual. O ser
humano está intimamente ligado à estrutura estatal, a sua liberdade se dá
dentro da ordem estabelecida pelo Estado. Segundo o documento:
O estudo
do conceito de Estado deve considerar que o homem é um ser histórico e
cultural, que está sempre ligado a uma determinada ordem normativa e política.
Dentro do campo do Direito, da Política e da própria Economia, o conceito de Estado aparece enquanto uma instância
que, ao mesmo tempo, racionaliza a distribuição do poder legítimo dentro de uma
nação e desenvolve sistemas econômicos complexos para distribuir bens, muitas
vezes de maneira desigual. (BRASIL, 2000b, p. 47).
A
concepção de Estado, trazida pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, é não
somente contra os ideais neoliberais, mas também contra as propostas do
liberalismo econômico clássico. Assim, não há mão-invisível[21] do
mercado que regula as relações econômicas nem o self-interest é gerador de riquezas nacionais.
A
economia de mercado é concebida como geradora de desigualdades, de acumulação e
concentração de riquezas. E o Estado tem a função de corrigir essas falhas,
intervir e regular a economia, corrigir as desigualdades, emitir papel moeda, de
acordo com os conhecimentos de Economia, que devem estar presentes de forma
explícita ou implícita nas aulas de Filosofia:
Em Economia, caberia ampliar a
compreensão e a avaliação do funcionamento de uma economia de mercado,
referindo-se os fatores de produção, os agentes econômicos, os aspectos
institucionais, a formação dos preços e os direitos do consumidor. Estes
apontam claramente os limites dessa economia de mercado, bem como o papel do
governo como agente regulador, mediante a provisão de serviços públicos e seu
financiamento através de impostos e taxas, a emissão de moeda e a correção de
desigualdades. (Ibidem, p. 65).
E a função da
educação, na visão dos Parâmetros, é reverter o papel do Estado e colocá-lo a
serviço da população. Os alunos, ao invés de se adaptarem, calarem frente à
ideologia neoliberal, devem recusá-la e trabalharem contra ela, em favor de um
mundo melhor. Segundo o texto:
Em todo caso, porque não é possível nos
esquecermos do horror, temos o dever de lutar e o direito de esperar que um
trabalho bem feito de nossa parte possa contribuir para a formação de homens
mais dignos, livres, sábios, diferentes e iguais, capazes até, ao invés de se adaptar, de recusar o mundo tal como está proposto nos termos atuais e engajar-se ativamente em sua transformação, com vistas a uma
convivência mais justa e fraterna.
É pedir demais que esse viver seja,
quem sabe, mais feliz? (Ibidem, p
63).
3.1 Do Estado à Confederação das Nações
O
pensamento complexo é favorável à existência de um Estado forte, que possa
intervir e regular as relações econômicas e sociais. Mas é contra um Estado
absoluto que elimine a liberdade e os direitos adquiridos pelos cidadãos. Essa
concepção de Estado com respeito à liberdade é semelhante à trazida pelos
Parâmetros.
O
pensamento complexo, porém, não estaciona na noção de Estado; ele objetiva a
criação da Terra-Pátria e essa prevê, dentre outras, a criação de uma
confederação de nações, com poder decisório e forças para agir em defesa do ser
humano, do meio ambiente, para mediar conflitos etc. Segundo Morin:
Como
organizar o planeta? Trata-se não de sonhar com um governo mundial ou com a
abolição dos Estados, mas pensar numa confederação de confederações das nações
associadas, dispondo cada uma delas de um estado autônomo. Evidentemente dotado
de instâncias planetárias para os problemas vitais que são, obviamente,
problemas mortais. Daí a necessidade da dupla ordem: autonomia/associação
(1997, p. 127).
As
instituições planetárias existentes hoje ou não possuem forças suficientes para
solucionar os problemas globais ou o seu poder está associado aos interesses
das grandes potências e do mercado econômico. A necessidade de buscar soluções
em conjunto para os problemas existentes, aliás gigantescos, pode motivar a
participação das nações nessa confederação, bem como uma refundação das
instituições existentes. De acordo com Morin, Ciurana e Motta:
É
necessário, porém, levar em consideração duas carências. Em primeiro lugar,
faltam instâncias mundiais que assumam os problemas fundamentais de dimensão
planetária [...] Para a guerra e a paz temos as Nações Unidas, mas a
Organização das Nações Unidas (ONU) carece de verdadeiros poderes e a
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é uma aliança parcial para a
defesa e a guerra, não para a paz planetária. Falta também uma instância
ecológica, porque é muito possível que decisões como as tomadas em Kyoto não
sejam levadas a termo. Falta igualmente uma instância econômica capaz de
regular a economia de forma alternativa à realizada pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI). O mesmo ocorre com a ausência de uma instância que proteja
as culturas. Falta uma instância capaz de decidir sobre problemas de vida ou
morte para o planeta, (2003, p. 92-3).
Política
de civilização reconhece, dentre as suas estratégias, o fortalecimento das
partes em vista do todo e, simultaneamente, o fortalecimento do todo em vista
das partes. Assim, as nações são as partes do todo e a conferência das nações é
o todo das partes. Logo, os Estados-Nação devem ter poder suficiente a fim de
aplicarem as decisões da Conferência das Nações, o que descarta a hipótese de
Estado Mínimo. As nações devem também ter isonomia, em especial, os países
pobres e pequenos, não só de voto, mas do direito de expressarem suas
reivindicações e opiniões.
As
diversas etnias que são engolidas por nações, que não as consideram como membros,
também devem ter voz ativa, fazendo-se respeitar dentro da Confederação. Esse é
um dos problemas decorrentes de um Estado forte, que pode fazer valer a sua
força militar e ideológica para calar as minorias. Por isso, a Confederação
deve não só ter propostas de ordem política, mas também trabalhar em prol da
construção de uma nova cultura, como dissemos no capítulo anterior, um novo Nomos, que respeite as individualidades
locais, e que pense essas particularidades em vista do todo.
A
civilização planetária escapa aos anseios dos Parâmetros; o documento entende
que o mundo está globalizado e as relações pessoais, políticas e econômicas se
dão dentro dessa aldeia global e, assim, as pessoas precisam se compreender
tanto como cidadãos nacionais como cidadãos do mundo. Porém o texto não preza
uma identidade planetária, pretende que o reconhecimento de cidadãos do mundo
leve os educando a assumirem a identidade nacional frente ao mundo globalizado.
De acordo com os Parâmetros:
Frente às imposições de uma economia e de uma
rede de informações cada vez mais globalizadas, urge assegurar a preservação das identidades territoriais e culturais,
não como sobrevivências anacrônicas, mas como realidades sociais constitutivas
de sentido vivencial para os diversos grupos humanos. Nesse sentido, a
Geografia, a Antropologia e também a História têm um significativo papel a
desempenhar na formação dos futuros cidadãos, entendendo-se estes quer como cidadãos de uma nação, quer como cidadãos
do mundo.
Em um mundo globalizado, em que
culturas e processos políticos e econômicos parecem fugir ao controle e ao
alcance, a construção de identidades
solidamente alicerçadas em conhecimentos originados nas Ciências Humanas e
na Filosofia constitui condição imprescindível ao prosseguimento da vida
social, evitando-se os riscos da fragmentação ou da perda de referências existenciais, responsável por
variadas formas de reação violentas e destrutivas (BRASIL, 2000b, p.13;
grifo nosso).
Os
Parâmetros têm, sim, uma preocupação positiva, pois objetivam gerar
competências e habilidades para que os alunos não deixem que as políticas
globalizadas, que atualmente tendem ao neoliberalismo, continuem gerando
pobreza e exploração no país. E que o país, por meio da ação política de seus
cidadãos, saiba se impor dentro das relações econômicas da aldeia global e
defender os interesses nacionais. Tomemos emprestada uma citação dos
Conhecimentos de Geografia:
[...] um importante conjunto de
conceitos refere-se à globalização, técnica e redes. É
necessário ter clareza que a globalização é um fenômeno decorrente da
implementação de novas tecnologias de comunicação e informação, isto é, de
novas redes técnicas, que permitem a circulação de idéias, mensagens, pessoas e
mercadorias num ritmo acelerado, e que acabaram por criar a interconexão entre
os lugares em tempo simultâneo. Neste processo, tiveram papel destacado a
instalação de redes técnicas, incluindo-se a indústria cultural, a ação de
empresas multinacionais e a circulação do capital, que intensificaram as
relações sociais em escala mundial, interligando localidades distantes, de tal
maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorridos a
milhares de quilômetros de distância (Ibidem,
p. 32-3).
A
globalização, na visão do documento, se dá em virtude da técnica e das redes de
comunicações, econômicas e políticas entre as nações, modificando a estrutura
produtiva em esfera global e afetando a particularidade dos países. A
compreensão dos mecanismos de funcionamento da aldeia global é uma necessidade
para que haja o crescimento nacional.
Essa
concepção dos Parâmetros está em acordo com as propostas nacionalistas,
colocadas pelos intelectuais da esquerda brasileira, tais como: Florestan
Fernandes[22]
e Darcy Ribeiro[23],
que objetivavam a construção de políticas de independência e desenvolvimento
econômico dos países latino-americanos. A Escola, para esses educadores, deve
preparar as pessoas para a cidadania, por meio de estratégias culturais,
identificação nacional e emancipação da classe trabalhadora.
Os
Parâmetros, ao pretenderem criar um projeto nacionalista para o desenvolvimento
econômico e social para o povo brasileiro, objetiva reverter às mazelas
oriundas da exploração estrangeira. Haja vista que a história do povo
brasileiro, nos últimos 500 anos, foi marcada pela exploração colonial ou
neocolonial. Iniciou-se no século XVI, com a colonização portuguesa, passando
pelo domínio inglês, a partir do Decreto de Abertura dos Portos às Nações
Amigas, que abriu os portos brasileiros à Inglaterra, em 1808; e por fim, houve
a dependência aos Estados Unidos da América, em especial, a partir da Primeira
Guerra Mundial (1914-1918).
O
nacionalismo, porém, se for exacerbado, pode atrapalhar a construção e a
efetivação das propostas planetárias. O pensamento complexo não é contra a
nação, ao contrário, pretende que essas sejam fortes o suficiente para poderem
agir em defesa dos interesses dos cidadãos. Porém, os interesses econômicos
podem ser postos em primeiro lugar e deixar para segundo plano a adesão das
propostas planetárias. Segundo Morin; Ciurana; Motta: “[...] O perigo não são
as nações, mas o nacionalismo, que se recusa em aceitar a construção de
instâncias coletivas em superior à da nação, encarregadas de assumir e
solucionar problemas supranacionais” (2003, p. 89).
Filosofia...
philos (φίλος) e sophia (σοφία). Essa definição nos foi dada por Pitágoras de Samos
(571 – 496 a.C.), filósofo e matemático grego. Sophia é a sabedoria e philos,
philia (φιλíα) é o amor
fraternal, amor entre pessoas que se querem bem, com respeito mútuo, é o amor
entre amigos ou a amizade. Logo, para Pitágoras, o filósofo é aquele que ama,
respeita e tem apreço pela sabedoria. O Pensador
(1902) de Rodin (1840 – 1917) representa essa visão pitagórica de filósofo.
Platão,
embora não tenha cunhado uma definição etimológica para a Filosofia, estabelece
outra relação de amor entre ela e o filósofo. O amor de Platão, não é a philia, mas o Eros[24]
(Ἔρως). O amor erótico se
relaciona com o desejo carnal, com o impulso sexual. O filósofo platônico ama,
deseja a sophia, por ela ser bela;
porém ela não estabelece uma relação mútua com ele. Assim, ele está sempre
pensando, maquinando formas de tê-la. Ele não é passível diante de sua falta,
mas um caçador terrível, um feiticeiro, um sofista. Talvez, se fosse Platão que
cunhasse o termo, em vez de Filosofia, seria “Erossofia”. O Grito (1893) de Edvard Munch (1863 – 1944) pode representar o
filósofo, descrito por Platão.
A
Filosofia nasce propondo outra explicação de mundo diferente da mitológica,
embora não tenha abandonado o mito. Os filósofos viveram questionando as
filosofias existentes em seu tempo e propondo novas explicações da realidade.
Parmênides de Eleia (530 – 460 a.C.) e Heráclito de Éfeso (535 – 475 a.C.),
filósofos pré-socráticos, são exemplos clássicos do choque de ideias, da
diferença de pensamentos, de díspares concepções da realidade. Para o eleata,
toda mudança é uma ilusão[25];
já para Heráclito só há a mudança[26].
As
filosofias se desenvolvem dentro da variedade de pensamentos e o choque de
ideias é um dos responsáveis pelo aprimoramento das diversas teorias e pelo
filosofar. Não há uma única Filosofia nem uma única maneira de filosofar. Em
uma mesma corrente filosófica, há várias formas de explicações e
interpretações. E é difícil encontrar um filósofo, com um grande número de
obras, que tenha apresentado uma mesma maneira de pensar, ao longo de toda a
sua vida. Por isso, é comum ouvirmos as expressões “o jovem Marx”, “o Platão
maduro”, “A segunda fase do pensamento hegeliano” etc.
E
quem seria Sócrates se não fossem os seus adversários sofistas? Um filósofo da physis? O bibliotecário da Escola
Pitagórica? E se Aristóteles não fosse levado pelos árabes para a Europa e tivesse
abalado a fé católica, essa fundamentada filosoficamente no neoplatonismo,
alguém estudaria Tomás de Aquino? Talvez, a única referência que teríamos dele não
seriam algumas notas de rodapé presentes nas obras de Agostinho de Hipona? E se
não fosse o essencialismo; o prêmio Nobel de Literatura de 1964 seria recebido
de bom grado por Jean-Paul Sartre? Ele seria um filósofo existencialista?
Os
Parâmetros Curriculares Nacionais prezam pela variedade de pensamento e
orientam para que diferentes correntes filosóficas e políticas sejam estudadas,
refletidas em sala. De acordo com o texto:
Ampliando-se
o escopo de análise, o estudo do Estado deverá produzir uma síntese que
contemple as diversas teorias sobre sua origem e finalidade. Determinadas
formas históricas de Estado, o Absolutista, o Liberal, o Democrático, o Socialista,
o Welfare-State (o do Bem-Estar) e o
Neoliberal, poderão ser abordadas e comparadas, em suas características, com o
Estado brasileiro atual (BRASIL, 2000b, p. 41).
O
documento não impõe uma Filosofia a ser seguida, para se fazer a leitura das diferentes
correntes filosóficas que deverão ser estudadas, mas deixa a cargo do professor
a escolha, conforme a formação e opção ideológica do educador. Segundo o
documento:
Em suma, a resposta que cada professor
de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta (b) “que Filosofia?” decorre,
naturalmente, da opção por um modo determinado de filosofar que ele considera
justificado. Aliás, é fundamental para esta proposta que ele tenha feito sua
escolha categorial e axiológica, a partir da qual lê e entende o mundo, pensa e
ensina. Caso contrário, além de esvaziar sua credibilidade como professor de
Filosofia, faltar-lhe-á um padrão, um fundamento, a partir do qual possa
encetar qualquer esboço de crítica. Por certo, há filosofias mais ou menos
críticas. No entanto, independentemente da posição que tome (pressupondo que se
responsabilize teórica e praticamente por ela), ele só pode pretender ver bons
frutos de seu trabalho docente na justa medida do rigor com que operar a partir
de sua escolha filosófica – um rigor que, certamente, varia de acordo com o
grau de formação cultural de cada um (BRASIL, 2000b, p. 48).
Essa
posição dos Parâmetros talvez seja o maior avanço, o ponto mais precioso de
todo o documento. Essa postura pode preencher as lacunas do documento, que apresentamos
anteriormente. O professor tem liberdade inclusive para questionar as
concepções da socialdemocracia e do nacionalismo, presentes no documento.
O
desejo pela liberdade esteve presente praticamente em todas as correntes
filosóficas. Os pré-socráticos não buscaram libertar o ser humano das
determinações da physis? Platão, das
ilusões da matéria? Aristóteles, das formas corrompidas de governo? Erasmo de
Roterdã, do falso cristianismo? Marx, da exploração do homem pelo homem? Sartre,
do determinismo? Morin, da crença da certeza absoluta, dada pela ciência
moderna ou pela razão?
As
novas ideias surgem como desvio do conhecimento produzido, o novo ameaça a
ordem estabelecida, que procura contê-lo. O pensamento complexo, a fim de
garantir a liberdade de pensamento e afloramento de novas formas de pensar,
propõe que seja assegurada a circulação de ideias, a variedade de correntes
filosóficas, o debate. E que seja dado espaço e direito para que haja o desvio,
a inovação. De acordo com Morin:
Em todo
caso, se é verdade que o surgimento e o desenvolvimento de uma idéia nova
precisam de um campo intelectual aberto, onde se debatam e se combatam teorias
e visões do mundo, se é verdade que toda novidade se manifesta como desvio e
aparece freqüentemente ou como ameaça, ou como insanidade aos defensores das
doutrinas e disciplinas estabelecidas, então o desenvolvimento científico, no
sentido de que esse termo comporte necessariamente invenção e descoberta,
necessita fundamentalmente de duas condições: 1) manutenção e desenvolvimento
do pluralismo teórico (ideológico, filosófico) em todas as instituições e
comissões científicas: 2) proteção do desvio, ou seja, tolerar/favorecer os
desvios no seio dos programas e instituições, apesar do risco de que o original
seja apenas extravagante, de que o espantoso não passe de absurdo (2005a, p.
34-5).
George
Orwell (1978), em seu romance 1984, descreve
uma civilização, controlada pelo Big
Brother (Grande Irmão), que regula todas as ações humanas, do trabalho à
reprodução, por meio de um sistema de câmeras e pelo aparato administrativo
estatal. A estrutura político-administrativa da sociedade orwelliana se dava
através de Ministérios. O Ministério da Fartura tinha a função de distribuir os
alimentos e os bens entre os moradores, e de forma desigual. O Ministério da
Verdade manipulava as notícias e informações, segundo as determinações do Big Brother. O Ministério da Paz
promovia a guerra e reforçava o sentimento nacional com notícias sobre as vitórias
da nação contra outros povos. O Ministério do Amor era encarregado de reprimir
o sexo, estimular o ódio contra os inimigos do Estado e este também se
encarregava de torturar quem pensasse diferente do estabelecido. As
investigações e prisões eram feitas pela Polícia do Pensamento.
A
ficção orwelliana é uma caricatura da história humana, a Polícia do Pensamento
esteve presente ora revestida com o hábito cristão, ora com o brasão da
suástica, ora com o uniforme do exército vermelho. E, atualmente, ela se revela
pela imposição do corpo perfeito, dos bens de consumo, da rotina do trabalho
etc. Por isso, talvez, seja muito difícil para nós pensarmos e darmos ao outro
o direito à liberdade, embora nós a queiramos para nós. O imprinting cultural, no qual nós fomos formados não nos deu
liberdade; logo, nós temos a tendência a reprimi-la.
Um
dos problemas da liberdade é quando o outro acha que a sua liberdade lhe dá o
direito de coagir os demais. Então, para evitar esse problema, por meio das
polícias do pensamento, coage-se a liberdade e estabelecem-se programas
determinados para se seguir. E alimenta-se o círculo vicioso de dominação, combatendo
um mal com outro mal, que se acredita ser um bem. Segundo Morin: “A maior
ilusão ética é crer que se obedece à mais alta exigência ética quando, na
verdade, se está agindo pelo mal e pela mentira” (2007, p. 55).
O
professor tem que ter o seu direito assegurado de decidir qual linha de
pensamento seguir; esse é um dos fundamentos da democracia, logo, da
Terra-Pátria, mesmo que o professor possa errar em suas decisões. Porém nós, de
antemão, não podemos prever se ele errará ou acertará. E o seu acerto pode vir
daquilo que acreditávamos ser um erro ou um desvio. Os Parâmetros apenas dão o
direito do professor escolher sua opção de leitura do mundo e como trabalhar. O
documento não confere ao professor o poder de déspota. Analisemos, agora, as
orientações para o professor.
Os
Parâmetros Curriculares Nacionais não obrigam o professor a criar novos
conhecimentos filosóficos, embora o incentivem para tal. Porém os Parâmetros
não abrem mão de um dos fundamentos básicos do ato de filosofar, o páthos. Segundo o Texto:
[...] Ainda que o professor de
Filosofia no Ensino Médio não esteja obrigado, por dever de ofício, a
produzir novidades intelectuais, sendo suficiente trabalhar como divulgador e
como formador de um público leitor/agente competente, como professor de
Filosofia está (desde sempre já) convocado a honrar uma tradição cujo
motivo originário, historicamente renovado, é o páthos da perplexidade,
a troca de certezas por dúvidas e a busca de esclarecimento (BRASIL, 2000b, p.
52).
A filosofia nasce do páthos (espanto, excesso, indignação, revolta, paixão, sofrimento).
Ele é a origem do ato de filosofar, que move a reflexão filosófica. Assim, o
Ser causa espanto no filósofo e ele quer entender e saber o porquê de o Ser se
revelar e se comportar daquela maneira e não de outra. Segundo Heidegger:
Os pensadores gregos, Platão e Aristóteles, chamaram a atenção para o
fato de que a filosofia e o filosofar fazem parte de uma dimensão do homem, que
designamos dis-posição (no sentido de uma tonalidade afetiva que nos harmoniza
e nos convoca por um apelo).
Platão diz: (...) “É verdadeiramente de um filósofo este páthos – o espanto; pois não há outra
origem imperante da filosofia que este”.
O espanto é, enquanto páthos,
a arkhé da filosofia. Devemos
compreender, em seu pleno sentido, a palavra grega arkhé. Designa aquilo de onde algo surge. Mas este “de onde” não é
deixado para trás no surgir; antes, a arkhé
torna-se aquilo que é expresso pelo verbo arkhein,
o que impera. O pó do espanto não está simplesmente no começo da filosofia,
como, por exemplo, o lavar das mãos precede a operação do cirurgião. O espanto
carrega a filosofia e impera em seu interior.
Aristóteles diz o mesmo: “espanto os homens
chegam agora e chegaram antigamente à origem imperante do filosofar” (àquilo de
onde nasce o filosofar e que constantemente determina sua marcha) (1971, p.
36-37).
O páthos, para o pensamento complexo, é
identificado com o Eros, descrito por
Platão[27].
Esse deve estar na educação para além das competências, das técnicas. O
professor deve ser movido pelo Eros,
ou seja, ele deve ser apaixonado se quer despertar o mesmo sentimento nos
alunos. Segundo Morin:
Exige algo que não é mencionado em
nenhum manual, mas que Platão já havia acusado como condição indispensável a
todo ensino: o eros, que é, a um só
tempo, desejo, prazer e amor; desejo e prazer de transmitir, amor pelo
conhecimento e amor pelos alunos. O eros
permite dominar a fruição ligada ao poder, em benefício da fruição ligada à
doação. É isso que, antes de tudo mais, pode despertar o desejo, o prazer e o
amor no aluno e no estudante (2003, p. 101-2).
O ofício do educador,
em sua missão de educar, a aposta (fé) que ele faz acreditando ser essa a
melhor opção para os educandos e para a humanidade e o Eros formam uma tríade recursiva, em que uma alimenta a outra, e essa
tríade caminha em sentido à Terra-Pátria.
Eros → missão → fé
↑_______↑______↓
O ensino de
Filosofia, segundo os Parâmetros, não deve ser transmitido de forma passiva,
nem os conteúdos tidos como verdade plena; ao contrário, a eles deve ser
inserido o páthos filosófico. Assim,
os conteúdos devem ser questionados, refutados, aceitos, completados. E o
professor tem um papel determinante nessa ação, pois é convidado a motivar o
debate, apresentar o seu ponto de vista e, de forma sincera, ouvir os alunos, garantir
o direito de expressão a todos.
A preferência pelo páthos em relação à assimilação dos
conteúdos de forma passiva esteve praticamente em todas as reflexões
filosóficas. E é difícil encontrar o contrário entre os pedagogos; a questão
que alguns pedagogos colocam é que não se pode criar o questionamento, a
problematização, sem o conteúdo prévio. Os Parâmetros também não defendem uma
educação sem conteúdo; ao contrário, eles, porém, colocam que os conteúdos
sejam problematizados a fim de criar competências, conforme dissemos
anteriormente.
Para Kant, por
exemplo, a educação sem o questionamento e reflexão se torna apenas uma forma
de memorização, sem criação, sem autonomia do sujeito pensante, sendo apenas
uma forma de imitação, em que ele continuará sendo guiado pela tradição.
Segundo o filósofo:
Aquele que aprendeu especialmente um
sistema de filosofia, por exemplo, o de Wolff, mesmo que tivesse na cabeça
todos os princípios, explicações e demonstrações, assim como a divisão de toda
a doutrina e pudesse, de certa maneira, contar todas as partes desse sistema
pelos dedos, não tem senão um
conhecimento histórico completo da filosofia wolffiana. Sabe e ajuíza apenas segundo o que lhe foi
dado. Contestai-lhe uma definição, e ele não saberá onde buscar outra.
Formou-se segundo uma razão alheia, mas
a faculdade de imitar não é a faculdade de invenção, isto é, o conhecimento
não resultou nele da razão e embora seja, sem dúvida, objetivamente racional,
é, contudo, subjetivamente, apenas histórico. Compreendeu bem e reteve bem,
isto é, aprendeu bem e é assim a máscara de um homem vivo. Os conhecimentos da
razão, que o são objetivamente (isto é, que originariamente podem apenas
resultar da própria razão do homem), só podem também usar este nome,
subjetivamente, quando forem hauridos nas fontes gerais da razão, donde pode também resultar a crítica e
mesmo a rejeição do que se aprendeu, isto é, quando forem extraídos os
princípios. (1989, p. 659-601; grifo nosso).
Hegel[28]
compara a pura assimilação dos conceitos filosóficos, sem reflexão, sem
questionamento, sem a produção de novas filosofias a um punhado de ossos, que
nada dizem. De acordo com o filósofo:
[...] Deixa que os mortos sepultem os
seus mortos, e segue-me. A história da filosofia no seu conjunto outra coisa não
seria senão um campo de batalha coberto somente dos ossos dos mortos; um reino
não só de indivíduos mortos, fisicamente finados, mas também de sistemas
refutados, e por conseguinte espiritualmente finados, cada um dos quais matou e
sepultou o precedente [...] (1996, p. 393).
Freire classifica
dois tipos de educação, uma a favor da manutenção do status quo, que ele chama de “educação bancária” e outra, uma
educação para a mudança e transformação, a “educação libertadora”. Na educação
bancária, o aluno apenas assimila, digere as informações dadas pelo professor;
o bom aluno é aquele que melhor consegue arquivar o que é ensinado, nessa
educação não há criação e/ou criatividade. Na educação libertadora, não há a
distinção entre professor e alunos, e ambos incidem sobre o objeto de estudo,
ele não é o término da educação, mas o começo dessa, o objeto é problematizado
e refletido a fim de que proporcione a criação. Segundo o pedagogo:
A educação libertadora,
problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de
transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos educandos, meros
pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato cognoscente. Como
situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser o término
do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes,
educador, de um lado, educandos de outro, a educação problematizadora coloca,
desde logo, a exigência da superação da contradição educador-educandos. Sem
esta não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos
sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível. (FREIRE, 1987, p.
39).
O páthos não é exclusividade do professor,
ele deve ser desperto, acordado, nos alunos. É essa a finalidade do páthos para o professor – o páthos para o filósofo tem a função de
fazê-lo filosofar -, o professor deve transmitir a paixão, o encanto aos alunos
a fim de que eles desenvolvam o seu páthos.
Uma das maneiras para trazê-lo à tona é o professor saber contextualizar o
conteúdo trabalhado, fazer as interligações entre a parte trabalhada e o todo
da sociedade, mostrar como a totalidade influencia nele e qual é o seu papel em
relação à totalidade a fim de que os alunos saibam superar a visão fragmentada
e reducionista presente em nossa sociedade. De acordo com os Parâmetros:
[...] também nesta a iniciativa em
questão deve partir do professor. Nesse sentido, cada docente está convocado a
um esforço de superação da tendência cultural a uma óptica reducionista,
isolacionista. É necessário, mais do que nunca, levar o aluno a ampliar seu
campo de visão até a inteira latitude do real, no sentido de apreendê-lo, não
como um amontoado caótico de coisas independentes e que apenas se sucedem
desordenadamente, mas, sim, como um conjunto de relações entre todos os seus
elementos, como uma trama que supõe a costura e o entrelaçamento dos fios: é
preciso tomar o real como uma totalidade inter-relacionada (BRASIL, 2000b, p.
56).
Morin fala que a
aptidão de questionar os conteúdos e saber religá-los é a primeira finalidade
da educação, ou seja, o ponto primordial de que deveriam partir todas as demais
reflexões. Essa educação visa à formação de uma cabeça bem-feita, que é uma
cabeça capaz de refletir. Esse modelo se contrapõe ao modelo de educação em que
há somente a preocupação com o acúmulo de informações e visa formar uma cabeça
bem cheia. De acordo com Morin:
A
PRIMEIRA FINALIDADE do ensino foi formulada por Montaigne: mais vale uma cabeça
bem-feita que bem cheia. O significado de “uma cabeça bem cheia” é óbvio: é uma cabeça onde o saber é
acumulado, empilhado, e não dispõe de um princípio de seleção e organização que
lhe dê sentido. “Uma cabeça bem-feita” significa que, em vez de acumular o
saber, é mais importante dispor ao mesmo tempo de:
– uma
aptidão geral para colocar e tratar os problemas;
–
princípios organizadores que permitam ligar os saberes e lhes dar sentido
(2003, p. 21).
Podemos nos perguntar:
Há limites para o páthos?, Ele se
limitará ao que é determinado em um programa educacional?, Os programas são
tentativas de enclausurar o páthos?, A
religação dos saberes alimenta a indignação, a perturbação, a paixão daqueles
que são marcados pelo páthos?
A educação não é a panaceia
da sociedade, mas tem o seu papel perante ela, bem como a sociedade tem
responsabilidade pela educação. O saber moderno, fragmentado, tecnoburocrático,
com paradigmas científicos inquestionáveis, é um dos responsáveis pelos
problemas que afligem a sociedade. Talvez estejamos no momento decisivo da história
da humanidade, em que precisaremos mudar, se quisermos continuar a sobreviver
em nosso planeta.
E não seria esse o
papel da educação? De questionar nossos paradigmas atuais e promover novos? De
inserir o páthos na sociedade fria e
calculista? De resgatar o Eros, que
sofreu fetiche pelos bens de consumo, pelo Thánatos, pela reflexão e
pelo medo da morte?
Passemos para a análise
do método de ensino, proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais.
Os Parâmetros Curriculares
Nacionais trazem os conhecimentos religados em três áreas de conhecimentos,
“Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, “Ciências da Natureza, Matemática e
suas Tecnologias” e “Ciências Humanas e suas Tecnologias”, com o objetivo de
promover a interdisciplinaridade. De acordo com o texto:
A reforma curricular do Ensino Médio
estabelece a divisão do conhecimento escolar em áreas, uma vez que entende os
conhecimentos cada vez mais imbricados aos conhecedores, seja no campo
técnico-científico, seja no âmbito do cotidiano da vida social. A organização
em três áreas – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Ciências da Natureza,
Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias – tem como
base a reunião daqueles conhecimentos que compartilham objetos de estudo e,
portanto, mais facilmente se comunicam, criando condições para que a prática
escolar se desenvolva numa perspectiva de interdisciplinaridade (BRASIL, 2000a,
p. 18-9).
Nós, pensadores
complexos, devemos louvar essa atitude. Há um avanço muito grande em relação à
concepção fragmentada do ensino, à especialização que chega, muitas vezes, à
hiperespecialização. Os problemas atuais são globais, oriundos de vários
fatores, e para solucioná-los, exigem-se respostas interligadas de conhecimentos,
pois eles são problemas com causas interligadas.
Acreditamos, porém,
que o documento possa avançar mais, promovendo uma nova ligação, agora não
somente dos conhecimentos, presentes nas áreas, mas das próprias áreas de
conhecimentos. Elas devem ser concebidas juntas e não separadas, para depois se
realizar a justaposição dos saberes. Uma área do saber deve estar enraizada em
outra área, no próprio ato de iniciar o processo de conhecimento. Segundo
Morin:
[...] Como fazê-los comunicarem-se?
Sugiro a comunicação em circuito; primeiro movimento: há que enraizar a esfera
antropossocial na esfera biológica, porque não é sem problema nem sem
conseqüência que somos seres vivos, animais sexuados, vertebrados, mamíferos,
primatas. De igual modo, há que enraizar a esfera viva na physis, porque, se a organização viva é original em relação a toda
organização físico-química, é uma organização físico-química, saída do mundo
físico e dele dependente. Mas operar enraizamento não é operar redução: não se
trata de reduzir o humano a interações físico-químicas, mas de reconhecer os
níveis de emergência (2005a, p. 138).
A humanidade não
caminha a passos largos, mas engatinha no eterno devir, e de maneira descontínua.
Toda mudança exige um choque muito grande com o já estabelecido, com os
paradigmas tidos como verdade plena. A posição assumida pelos Parâmetros se
encontra dentro desse processo de mudança.
A realidade
transforma as ideias e estas, a realidade, ambas vão construindo-se e
destruindo-se continuamente. As ideias sobre a ligação dos saberes, presentes
no documento, conseguiram propor as transformações alcançadas até esse momento;
talvez a mudança na realidade esteja exigindo uma nova mudança nas ideias.
5 Conclusão
A análise complexa
requer um cuidado diferenciado de uma análise linear. Nós precisamos responder
individualmente ao que cada parte do todo de nosso objeto traz em si e uma
parte, muitas vezes, apresenta diferenças paradigmáticas da outra. Nós também
não focamos uma única ideologia e saímos a procurá-la ao longo dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, mas buscamos em cada parte as ideias que a sustentam.
Talvez, por isso, nossa análise não apresente uma profundidade específica, que
uma abordagem linear traria. Porém uma abordagem linear pode pecar na análise
da relação das partes em relação ao todo e do todo em relação às partes.
Os Parâmetros
Curriculares Nacionais orientam o ensino de Filosofia a promover reflexões que
despertem nos alunos a cidadania ativa. E o documento frisa que as mudanças
para uma melhoria na sociedade somente se realizarão com a participação
política de seus membros. A sociedade é apresentada em constante transformação,
conforme as ações dos cidadãos, que, por sua vez, modificam-se com a sociedade.
O jogo político é
apresentado com uma disputa de forças opostas entre aqueles que querem manter o
status quo e aqueles que querem as
mudanças. A realidade é portadora de grandes desigualdades econômicas e sociais,
gerando de um lado, os ricos que se apoderam dos meios de produção e dos bens e,
de outro, os pobres que padecem com a falta desses bens. E as instituições
existentes tendem a manter a ordem existente.
O ensino de Filosofia
deve despertar o desejo pelo novo através do afloramento do páthos e da reflexão sobre as
contradições sociais. E a sala de aula deve ser o espaço preparatório da vida
política, onde os alunos exercitarão o debate, o choque de ideias.
Esses pontos são
compartilhados pelo pensamento complexo. A contribuição que trazemos aos
Parâmetros está em abrir o campo de visão do documento, pois neste, se os
cidadãos participarem das decisões políticas e econômicas e conhecerem os
mecanismos de produção, mediados pela técnica, o crescimento econômico trará o
desenvolvimento social. O documento, embora reconheça que a mudança sofre com o
imprevisto, vê no uso correto da técnica a possibilidade do controle do futuro.
Já o pensamento complexo não é contrário à participação das pessoas nas
decisões relacionadas à economia, mas chama a atenção para a impossibilidade de
se determinar o futuro; logo não há como saber se necessariamente o crescimento
econômico trará melhorias sociais. Ressaltamos, ainda, os perigos da técnica
que o documento desconsidera, como os impactos ambientais, as novas interfaces
entre a máquina e o ser humano, que podem tornar o humano um ser robotizado.
Os Parâmetros abrem a
reflexão para diversas ideologias políticas, porém eles objetivam a criação de
competências apenas para uma corrente política, a socialdemocracia. Para uma
prática política mais abrangente, é necessária a criação de competências,
baseadas em outras correntes ideológicas, pois corre-se o risco de se esvaziar
o debate político.
A visão política do
documento se restringe ao âmbito nacional. O pensamento complexo convida a
militância para também pensar e agir visando ao bem do Planeta, a Terra-Pátria;
os problemas relacionados ao Planeta afetam toda a humanidade e para
garantirmos a sobrevivência da espécie humana, se faz necessário uma visão
global.
Por fim, o pensamento
complexo propõe uma nova reorganização do currículo, não mais por áreas de
conhecimento, mas enfatiza que esses conhecimentos sejam concebidos juntos.
[1] Para Platão, no dialogo Fédon:
“Assim, pois, que o adquirimos antes do nascimento, uma vez que ao nascer já
dele dispúnhamos, podemos dizer, em conseqüência, que conhecíamos tanto antes
como logo depois de nascer, não apenas o Igual, como o Maior e o Menor, e
também tudo o que é da mesma espécie? Pois o que, de fato, interessa agora à
nossa deliberação não é apenas o Igual, mas também o Belo em si mesmo, o Bom em
si, o Justo, o Piedoso, e de modo geral, digamos assim, tudo o mais que é a
Realidade em si, tanto nas questões que se apresentam a este propósito, como
nas respostas que lhes são dadas. De modo que é uma necessidade adquirir o
conhecimento de todas essas coisas antes do nascimento...” (1991, p. 79).
[2] Abstração, segundo Abbagnano, é:
“[...] Aristóteles explica com a A. a formação das ciências teoréticas, isto é,
da matemática, da física e da filosofia pura. "O matemático", diz
ele, "despoja as coisas de todas as qualidades sensíveis (peso, leveza,
dureza, etc.) e as reduz à quantidade descontínua e contínua; o físico
prescinde de todas as determinações do ser que não se reduzam ao movimento.
Analogamente, o filósofo despoja o ser de todas as determinações particulares
(quantidade, movimento, etc.) e limita-se a considerá-lo só enquanto ser"
(Met., XI, 3, 1.061 a 28 ss.). O processo todo do conhecer pode ser, segundo
Aristóteles, descrito com a A.: "O conhecimento sensível consiste em
assumir as formas sensíveis sem a matéria assim como a cera assume a marca do
sinete sem o ferro ou o ouro de que ele é composto" (De an., II, 12, 424 a
18). E o conhecimento intelectual recebe as formas inteligíveis abstraindo-as
das formas sensíveis em que estão presentes (ibid., III, 7, 431 ss.) [...]”
(2007, p. 15).
[3] Segundo Ockham: "Nada que esteja
fora da alma, nem por si, nem por algo real ou mental que se lhe acrescente,
seja de que forma se considere ou compreenda, é universal, pois é tão grande a
impossibilidade de que algo fora da alma seja de qualquer maneira universal (a
não ser por convenção arbitrária, do mesmo modo como a palavra 'homem', que é
particular, se torna universal) quão grande é a impossibilidade de que o homem,
por qualquer consideração ou segundo qualquer ser, seja o asno" (apud ABBAGNANO, 2007, p. 554).
[4] A palavra política, do grego πολιτεία
(politeía), significa as ações dos
cidadãos em função da vida da polis,
cidade-Estado.
[5] Antonio Gramsci (1891 – 1937)
filósofo e político marxista. Sua principal obra são os Cadernos do Cárcere, escrita durante o período em que permaneceu na
prisão, condenado pelo regime fascista italiano.
[6] A concepção de Saviani sobre
“Técnico” rememora a concepção grega, em que o saber técnico é o saber fazer
algo (ver nota 15). E o enfoque dado por Saviani é saber fazer dentro da
política.
[7] A concepção de Morin apresentada aqui
sobre “Técnico” se refere ao saber que visa ao processo de produção, em
especial, industrial e tecnológica.
[8] Ad
hoc expressão latina que significa "para isto", "para esta
finalidade”, “para fim determinado”.
[9] “[...] Hegel, que também chama de
subjetivo ou absoluto o seu I., esclarece seu princípio desta forma: ‘A
proposição de que o finito é o ideal constitui o idealismo. O I. da filosofia
consiste apenas nisto: em não reconhecer o finito como verdadeiro ser. Toda
filosofia é essencialmente I., ou pelo menos tem o I. como princípio; trata-se
apenas de saber até que ponto esse princípio está efetivamente realizado. A
filosofia é I. tanto quanto religião’” (ABBAGNANO, 2007, p. 524).
[10] “Entende-se por essa expressão a
filosofia oficial do comunismo enquanto teoria dialética da realidade (natural
e histórica). Mais que de materialismo, trata-se na realidade de um dialetismo
naturalista, cujos princípios foram propostos por Marx, desenvolvidos por
Engels [...] Segundo Engels. Hegel reconheceu perfeitamente as leis da
dialética, mas considerou-as "puras leis do pensamento", já que não
foram extraídas da natureza e da história, mas "concedidas a estas do
alto, como leis do pensamento". Porém, "se invertermos as coisas,
tudo se tornará simples: as leis da dialética que, na filosofia idealista,
parecem extremamente misteriosas, tornam-se logo simples e claras como o
sol" [...] Segundo Engels, são três as leis: 1ª lei da conversão da
quantidade em qualidade e vice-versa; 2ª lei da interpenetração dos opostos; 3ª
lei da negação da negação. A primeira significa que na natureza as variações
qualitativas só podem ser obtidas somando-se ou subtraindo-se matéria ou
movimento, ou seja, por meio de variações quantitativas. A segunda lei garante
a unidade e a continuidade da mudança incessante da natureza. A terceira
significa que cada síntese é por sua vez a tese de uma nova antítese que dará
lugar a uma nova síntese [...] Segundo Engels, esse conjunto de leis determina
a evolução necessária — e necessariamente progressiva — do mundo natural. A
evolução histórica continua, com as mesmas leis, a evolução natural. O sentido
global do processo é otimista. A organização da produção segundo um plano, como
se realizará na sociedade comunista, destina-se a elevar os homens acima do
mundo animal, em termos sociais, tanto quanto o uso de instrumentos de produção
o elevou em termos de espécie. Como se vê, o M. dialético de Engels nada mais é
que a teoria da evolução (que nos tempos de Engels festejava seus primeiros
triunfos), interpretada em termos de fórmulas dialéticas hegelianas, com
prognósticos extremamente otimistas” (ABBAGNANO, 2007, p. 651).
[11] Anarquia, do grego αναρχος - anarkhos, que significa "sem
governantes". A palavra é formada a partir do prefixo αν-, an-, "sem" + αρχή,
"soberania”, “princípio”, “reino”, “leis”. O anarquismo moderno é
decorrente das ideias do marxismo. Para o anarquismo, o Estado é o mantenedor
do status quo. Logo, para que haja a
igualdade e o fim da exploração do povo, se faz necessária a destruição do
Estado.
[12] O ludismo foi um movimento
trabalhador ocorrido com o advento da revolução industrial, contrário ao uso
das máquinas na produção industrial, pois elas substituíam a força de trabalho
humano pela força mecânica. O nome ludismo advém de Ned Ludd, um dos lideres do
movimento. A ação do ludismo consistia basicamente em invadir fábricas e
destruir as máquinas, por isso, eles também são conhecidos como “os quebradores
de máquinas”.
[13] Segundo Bukharine e Preobrazhensky:
“[...] O fundamento da sociedade comunista é a propriedade comum dos meios de
produção e de troca, isto é, a posse das máquinas, dos aparelhos, das
locomotivas, dos navios a vapor, dos edifícios, dos armazéns, dos elevadores,
das minas, do telégrafo e do telefone, da terra e do gado. [...] Se todas as
fábricas, toda a cultura, formam uma imensa associação, é evidente que se
precisa calcular exatamente como repartir as forças de trabalho entre os
diferentes ramos da indústria; que produtos é preciso fabricar e em que
quantidade; como e onde dirigir as forças técnicas, e assim consecutivamente.
Tudo isto deve ser calculado previamente, pelo menos de modo aproximado, e é
preciso que a execução esteja conforme ao plano traçado. Assim é que se realiza
a organização da produção comunista. Sem um plano geral e uma direção comum,
sem cálculo exato, não há organização. No regime comunista, existe esse plano”
(2005, on-line).
[14] As ideias semelhantes à
socialdemocracia sempre estiveram em disputa com a vertente do socialismo
revolucionário. Por exemplo, o nome original do Partido Comunista da União
Soviética (Коммунисти́ческая па́ртия
Сове́тского Сою́за), antes da tomada do poder, era Partido Operário
Social-Democrata Russo (Росси́йская
Социа́л-Демократи́ческая Рабо́чая Па́ртия). Nele havia duas tendências
políticas, os Mencheviques, que significa minoria, liderados por Plekhanov e
por Martov e Bolcheviques, que significa maioria, liderados por Lênin. Os
Mencheviques propunham uma participação dos trabalhadores nas atividades
políticas como forma de conquista do poder. Bolcheviques defendiam que a única
via de se chegar ao poder era via a luta revolucionária, essa que foi dirigida
pelos membros do Partido e excluiu o povo do processo decisório, relegando-o a
função de “Massa de Manobra”.
[15] Segundo Morin: “O socialismo
voltou-se à democratização de todo o tecido da vida social; a sua versão
“soviética” suprimiu toda a democracia e sua versão social-democrata não
conseguiu impedir as regressões democráticas que, por razões diversas, corroem
por dentro as nossas civilizações” (1997, p. 149).
[16] Conferir: PLATÃO, 1949, p. 317 – 326.
[17] Segundo Aristóteles, o “[...]
intelecto contemplativo, que não é nem prático nem produtivo, o bom e o mau
estado são respectivamente a verdade e a falsidade; com efeito, essa é a função
de toda a parte racional do homem, ao passo que da parte prática e intelectual
o bom estado é a concordância da verdade com o reto desejo” (2006, p. 129). E
sobre a vida contemplativa, diz o Estagirita: “[...] em primeiro lugar, essa
atividade é a melhor, pois não só a razão a melhor coisa que existe em nós,
como também os objetos com os quais a razão se relaciona são os melhores entre
os objetos cognoscíveis; em segundo lugar, essa atividade é a mais continua, já
que a contemplação da verdade pode ser mais contínua do qualquer outra
atividade. E pensamos que a felicidade tem um elemento de prazer, e que a
atividade da sabedoria filosófica é reconhecidamente a mais agradável das
atividades virtuosas; pelo menos, supõe-se que o seu cultivo oferece prazeres
maravilhosos pela pureza e pela perenidade; e é de esperar que aqueles que já
sabem passem o seu tempo de maneira mais agradável que as pessoas que ainda não
procurando conhecer” (Ibidem, p.
229).
[18] Segundo, o ideólogo neoliberal,
Friedman: “Um governo que mantenha a lei e a ordem; defina os direitos de
propriedades; sirva de meio para a modificação dos direitos de propriedade e de
outras regras do jogo econômico; julgue disputas sobre a interpretação das
regras; reforce contratos; promova a competição; forneça uma estrutura
monetária; envolva-se em atividades para evitar monopólio técnico e evite os
efeitos laterais considerados como suficientemente importantes para justificar
a intervenção do governo; suplemente a caridade privada e a família na proteção
do irresponsável, quer se trate de um enfermo mental ou de uma criança; um tal
governo teria, evidentemente, importantes funções a desempenhar. O liberal
consistente não é um anarquista” (1984, p. 39).
[19] De acordo com Friedman: “A
distribuição da renda é uma das áreas em que o governo tem causado maior número
de males - que não consegue eliminar mais tarde com outro conjunto de medidas.
É outro exemplo da justificação da intervenção do governo em termos de alegadas
deficiências do sistema de empresa privada, quando, na verdade, a maioria dos
fenômenos que os defensores de um governo mais forte criticam são, eles
próprios, criação dos governos, fortes ou fracos” (Ibidem, p. 160).
[20] Nas palavras de Friedman: “[...]
Trata-se de uma forma de investimentos em capital humano precisamente análoga
ao investimento em maquinaria, instalações ou outra forma qualquer de capital
não humano. Sua função é aumentar a produtividade econômica do ser humano. Se
ele se tornar produtivo, será recompensado, numa sociedade de empresa livre,
recebendo pagamento por seus serviços - mais alto do que receberia em outras
circunstâncias. Essa diferença no retorno é o incentivo econômico para o
investimento de capital - quer sob a forma de uma máquina quer em termos de ser
humano [...]” (Ibidem, p. 95).
[21] Adam Smith incorporou o conceito
agostiniano da Mão Invisível de Deus, essa que rege o mundo à Deus, ao mercado.
Assim, o mercado ganha status de onisciente e onipotente. Os interesses
pessoais (self-interest) de cada
indivíduo devem coincidir com a mão-invisível do mercado para que haja o
progresso e o desenvolvimento. As leis do mercado seguem a lógica newtoniana de
desenvolvimento. A fim de que o mercado se desenvolva plenamente se faz
necessário que o Estado não intervenha na economia, deixando a mão invisível
agir livremente. De acordo com o economista escocês: “[...] Ora, a renda anual
de cada sociedade é sempre exatamente igual ao valor de troca da produção total
anual de sua atividade, ou, mais precisamente, equivale ao citado valor de
troca. Portanto, já que cada indivíduo procura, na medida do possível, empregar
seu capital em fomentar a atividade nacional e dirigir de tal maneira essa
atividade que seu produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo
necessariamente se esforça por aumentar ao máximo possível a renda anual da
sociedade. Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse
público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a
atividade do país e não de outros países, ele tem em vista apenas sua própria
segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser
de maior valor, visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros
casos, é levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia
parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse
objetivo não faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir seus próprios
interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito
mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo. Nunca ouvi dizer
que tenham realizado grandes coisas para o país aqueles que simulam exercer o
comércio visando ao bem público. Efetivamente, é um artifício não muito comum
entre os comerciantes, e não são necessárias muitas palavras para dissuadi-los
disso.
É evidente que cada indivíduo, na situação local em que
se encontra, tem muito melhores condições do que qualquer estadista ou
legislador de julgar por si mesmo qual o tipo de atividade nacional no qual
pode empregar seu capital, e cujo produto tenha probabilidade de alcançar o
valor máximo. O estadista que tentasse orientar pessoas particulares sobre como
devem empregar seu capital não somente se sobrecarregaria com uma preocupação
altamente desnecessária, mas também assumiria uma autoridade que seguramente
não pode ser confiada nem a uma pessoa individual nem mesmo a alguma assembleia
ou conselho, e que em lugar algum seria tão perigosa como nas mãos de uma
pessoa com insensatez e presunção suficientes para imaginar-se capaz de exercer
tal autoridade” (1996, p. 429-30).
[22] Segundo Fernandes: “Dessa
perspectiva, a Independência pressupunha, lado a lado, um elemento puramente
revolucionário e outro elemento especificamente conservador. O elemento revolucionário aparecia nos propósitos
de despojar a ordem social, herdada
da sociedade colonial, dos caracteres heteronômicos aos quais fora moldada,
requisito para que ela adquirisse a elasticidade e a autonomia exigidas por uma
sociedade nacional. O elemento conservador
evidenciava-se nos propósitos de preservar
e fortalecer, a todo custo, uma ordem social que não possuía condições
materiais e morais suficientes para engendrar o padrão de autonomia necessário
à construção e florescimento de uma
nação [...]” (1976, p. 32-3; grifo nosso).
[23] Darcy Ribeiro, no Prefácio de O Povo Brasileiro, adverte o leitor
sobre suas pretensões, com aquela obra; segundo o antropólogo: “Portanto, não
se iluda comigo, leitor. Além de antropólogo, sou homem de fé e de partido.
Faço política e faço ciência movido por razões éticas e por um fundo de
patriotismo. Não procure, aqui, análises isentas. Este é um livro que quer ser
participante, que aspira a influir sobre as pessoas, que aspira a ajudar o
Brasil a encontrar‐se
a si mesmo” (1995, 11).
[24] Na boca de Sócrates, diz Platão:
"[...] Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os
demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram
de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou na porta. Ora,
Recurso, embriagado com o néctar - pois o vinho ainda não havia - penetrou o
jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de
recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o
Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu
natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também
Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a
condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de
ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem
lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos
caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão.
Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso,
decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de
sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago,
feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia
ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita,
graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem
empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e
da ignorância. Eis com efeito o que se dá. Nenhum deus filosofa ou deseja ser
sábio – pois já é – , assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem
também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que
está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil,
nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser
deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso (1991, p. 35).
[25] Para Parmênides, o ser é eterno e
imóvel, de acordo com o filósofo: “[...] pois é todo inteiro, inabalável e sem
fim; nem jamais era nem será, pois agora todo junto, uno contínuo [...] Nem
divisível é, pois é todo idêntico; [...] imóvel em limites de grandes liames é
sem princípio e sem pausa, pois geração e perecimento bem longe afastaram-se,
rechaçou-os fé verdadeira [...] (Parmênides,
1989, p. 143).
[26] Para Heráclito, a eternidade é a
constante mudança, segundo o filósofo: “Este mundo, o mesmo de todos os
(seres), nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre
vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas” e “Limites de alma não
os encontrarias, todo caminho percorrendo; tão profundo logos ela tem” e “Pois
uma só é a (coisa) sábia, possuir o conhecimento que tudo se dirige através de
tudo” (Heráclito,1989, p. 82-3).
[27] Conferir Nota 75.
[28] Para Hegel, a história é a
manifestação do Espírito Universal. O Espírito é eterno e está continuamente se
manifestando e concretizando na história humana. As pessoas, em geral, não
compreendem a continuidade do Espírito na história. O filósofo, ao contrário,
consegue coincidir a sua razão particular com o Espírito Absoluto, então, ele
descreve a manifestação do Espírito naquele momento da História. Estudar a
História da Filosofia, então, auxilia o filósofo a entender como o Espírito se
manifestou. Segundo o filósofo: “A história da filosofia representa a série dos
espíritos nobres, a galeria dos heróis da razão pensante, os quais, graças a
essa razão, logram penetrar na essência das coisas, da natureza e do espírito,
na essência de Deus, conquistando assim com o próprio trabalho o mais precioso
tesouro: o do conhecimento racional” (1996, p. 381).
O Espírito, porém, por estar em continua mudança, não
está mais manifestando conforme o filósofo o descreveu, necessitando de uma
nova Filosofia. Por isso, todo o filósofo tem a pretensão de derrubar a
filosofia antecedente, pois ela já está ultrapassada, pois o Espírito é móvel.
Assim, a tradição filosófica vai se enriquecendo, ao longo da história, com
novas contribuições, novos entendimentos e explicações da manifestação do
Espírito. De acordo com Hegel: “Mas esta tradição não é apenas uma ama que
conserva fielmente o patrimônio recebido para o manter e transmitir invariável
aos vindouros, como o curso da natureza que, através de infinitas variações e
atividades de formas e funções, sempre se conserva fiel às suas leis originais
sem progredir; não é estátua de pedra, mas é viva, e continuamente se vai
enriquecendo com novas contribuições, à maneira de rio que engrossa o caudal à
medida que se afasta da nascente [...]” (Ibidem,
p. 382).
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