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sexta-feira, 27 de maio de 2011

A Condição Humana - Hannah Arendt

Prólogo

Em 1957, um objeto terrestre, feito pela mão do homem, foi lançado ao universo, onde durante algumas semanas girou em torno da Terra segundo as mesmas leis de gravitação que governam o movimento dos corpos celestes - o Sol, a Lua e as estrelas. É verdade que o satélite artificial não era lua nem estrela; não era um corpo celeste que pudesse prosseguir em sua órbita circular por um período de tempo que para nós, mortais limitados ao tempo da Terra, durasse uma eternidade. Ainda assim, pode permanecer nos céus durante algum tempo; e lá ficou, movendo-se no convívio dos astros como se estes o houvessem provisoriamente admitido em sua sublime companhia.
Este evento, que em importância ultrapassa todos os outros, até mesmo a desintegração do átomo, teria sido saudado com a mais pura alegria não fossem as suas incômodas circunstâncias militares e políticas. O curioso, porém, é que essa alegria não foi triunfal: o que encheu o coração dos homens que, agora, ao erguer os olhos para os céus, podiam contemplar uma de sua obras, não foi orgulho nem assombro ante a enormidade da força e da proficiência humanas. A reação imediata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro "passo para libertar o homem de sua prisão na terra". E essa estranha declaração, longe de ter sido o lapso acidental de algum repórter norte-americano, refletia, sem o saber, as extraordinárias palavras gravadas há mais de vinte anos no obelisco fúnebre de um dos grandes cientistas da Rússia: "A humanidade não permanecerá para sempre presa à terra".Há já algum tempo este tipo de sentimento vem-se tornando comum; e mostra que, em toda parte, os homens não tardam a adaptar-se às descobertas da ciência e aos feitos da técnica, mas, ao contrário, estão décadas à sua frente. Neste caso, como em outros, a ciência apenas realizou e afirmou aquilo que os homens haviam antecipado em sonhos - sonhos que não eram loucos nem ociosos. A novidade foi apenas que um dos jornais mais respeitáveis dos Estados Unidos levou finalmente à primeira página aquilo que, até então, estivera relegado ao reino da literatura de ficção científica, tão destituída de respeitabilidade (e à qual, infelizmente, ninguém deu até agora a atenção que merece como veículo dos sentimentos e desejos das massas). A banalidade da declaração não deve obscurecer o fato de quão extraordinária ela é, pois embora os cristãos tenham chamado este terra de "vale de lágrimas" e os filósofos tenham visto o próprio corpo do homem como a prisão da mente e da alma, ninguém na história da humanidade jamais havia concebido a terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à Lua. Devem a emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era o Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma terra que era a Mãe de todos os seres vivos sob o firmamento?
A Terra é a própria quintessência da condição humana e, no que sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O mundo - artifício humano - separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos. Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tronar "artificial" a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, "sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores" e "alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função"; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.
Esse homem futuro, que segundo os cientista será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada - um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico - e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.
Embora tais possibilidades pertençam ainda a um futuro muito remoto, os primeiros efeitos colaterais dos grandes triunfos da ciência já se fizeram sentir sob a forma de uma crise dentro das próprias ciências naturais. O problema tem a ver com o fato de que as "verdades" da moderna visão científica do mundo, embora possam ser demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio. Quem quer que procure falar conceitual e coerentemente dessas "verdades", emitirá frase que serão "talvez não tão desprovidas de significado como um 'círculo triangular', mas muito mais absurdas que um 'leão alado' (Erwin Schrödinger). Ainda não sabemos se esta situação é definitiva; mas pode vir a suceder que nós, criaturas humanas que nos pusemos a agir como habitantes do universo, jamais cheguemos a compreender, isto é, a pensar e a falar sobre aquilo que, no entando, somos capazes de fazer. Neste caso, seria como se o nosso cérebro, condição material e física do pensamento, não pudesse acompanhar o que fazemos, de modo que, de agora em diante, necessitaríamos realmente de máquinas que pensassem e falassem por nós. Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de know-how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja.
Contudo, mesmo que deixemos de lado estas últimas e ainda incertas consequências, a situação criada pelas ciências tem grande significado político. Sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político. Mas, a seguirmos o conselho, que ouvimos com tanta frequência, de ajustar nossas atitudes culturais ao estado atual de realização científica, adotaríamos sem dúvida um modo de vida no qual o discurso não teria sentido. Pois atualmente as ciências são forçadas a dotar uma linguagem de símbolos matemáticos que, embora originariamente destinada a abreviar afirmações enunciadas, contém agora afirmações que de modo algum podem ser reconvertidas em palavras. O motivo pelo qual talvez seja prudente duvidar do julgamento político de cientistas enquanto cientistas não é, em primeiro lugar, a sua falta de "caráter" - o fato de não se terem recusado a criar armas atômicas - nem a sua ingenuidade - o fato de não terem compreendido que, uma vez criadas tais armas, eles seriam os últimos a ser consultados quanto ao seu emprego -, mas precisamente o fato de que habitam um mundo no qual as palavras perderam o seu poder. E tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido. Haverá talvez verdades que ficam além da linguagem e que podem ser de grande relevância para o homem no singular, isto é, para o homem que, seja o que for, não é um ser político. Mas os homens no plural, isto é, os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos.
Mais próximo e talvez igualmente decisivo é outro evento não menos ameaçador: o advento da automação, que dentro de algumas décadas provavelmente esvaziará as fábricas e libertará a humanidade do seu fardo mais antigo e mais natural, o fardo do trabalho e da sujeição à necessidade. Mais uma vez, trata-se de um aspecto fundamental da condição humana; mas a rebelião contra esse aspecto, o desejo de libertação das "fadigas e penas" do trabalho é tão antigo quanto a história de que se tem registro. Por si, a isenção do trabalho não é novidade: já foi um dos mais arraigados privilégios de uma minoria. Neste segundo caso, parece que o progresso científico e as conquistas da técnica serviram apenas para a realização de algo com que todas as eras anteriores sonharam e nenhuma pode realizar.
Mas isto é assim apenas na aparência. A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda a sociedade em uma sociedade operária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fadas, chega num instante em que só pode ser contraproducente. A sociedade que está para ser libertada dos grulhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade. Dentro desta sociedade, que é igualitária porque é próprio do trabalho nivelar os homens, já não existem classes nem uma aristocracia de natureza política ou espiritual da qual pudesse ressurgir a restauração das outras capacidades do homem. Até mesmo presidentes, reis e primeiros-ministros concebem seus cargos como tarefas necessárias à vida ad sociedade; e, entre os intelectuais, somente alguns indivíduos isolados consideram ainda o que fazem em termos de trabalho, e não como meio de ganhar o próprio sustento. O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior.

(Hannah Arendt, A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo; introdução de Celso Lafer. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1981, p. 9-13).

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