Política de civilização e problema mundial
Vou tentar descrever, de maneira breve, o problema do desafio da complexidade.
Começarei pela idéia de que toda e qualquer informação tem apenas um sentido em relação a uma situação, a um contexto. Se, por exemplo; eu disser "amo-te", esta palavra pode ser a expressão de um apaixonado sincero e deve ser tomada nesse sentido; mas pode ser também a farsa de um sedutor e nessa altura será uma mentira.
Pode ser ainda, numa peça de teatro, a palavra de um herói, e não do ator que desempenha o papel do personagem; o sentido das palavras muda, portanto, necessariamente, segundo o contexto em que as empregamos; é por isso que, em lingüística, como todos sabemos, o sentido de um texto é esclarecido pelo seu contexto. Por exemplo: quando ouvimos as informações na televisão ou as lemos nos jornais, a palavra Sarajevo, a palavra Hezbollah e a palavra Kabul não têm sentido se não as situarmos no seu contexto geográfico e histórico, o que quer dizer que, para conhecer, não podemos isolar uma palavra, uma informação; é necessário ligá-Ia a um contexto e mobilizar o nosso saber, a nossa cultura, para chegar a um conhecimento apropriado e oportuno da mesma.
O problema do conhecimento é um desafio porque só podemos conhecer, como dizia Pascal, as partes se conhecermos o todo em que se situam, e só podemos conhecer o todo se conhecermos as partes que o compõem. Ora, hoje vivemos uma época de mundialização, todos os nossos grandes problemas deixaram de ser particulares para se tomar mundiais: o da energia e, em especial, o da bomba atômica, da disseminação nuclear, da ecologia, que é o da nossa biosfera, o dos vírus, como a Aids, imediatamente se mundializam.
Todos os problemas se situam em um nível global e, por isso, devemos mobilizar a nossa atitude não só para os contextualizar, mas ainda para os mundializar, para os globalizar; devemos, em seguida, partir do global para o particular e do particular para o global, que é o sentido da frase de Pascal: "Não posso conhecer o todo se não conhecer particularmente as partes, e não posso conhecer as partes se não conhecer o todo".
Deveríamos, portanto, ser animados por um princípio de pensamento que nos permitisse ligar as coisas que nos parecem separadas umas em relação às outras. Ora, o nosso sistema educativo privilegia a separação em vez de praticar a ligação. A organização do conhecimento sob a forma de disciplinas seria útil se estas não estivessem fechadas em si mesmas, compartimentadas umas em relação às outras; assim, o conhecimento de um conjunto global,o homem, é um conhecimento parcelado. Se quisermos conhecer o espírito humano, podemos fazê-Io através das ciências humanas, como a psicologia, mas o outro aspecto do espírito humano, o cérebro, órgão biológico, será estudado pela biologia.
Vivemos numa realidade multidimensional, simultaneamente econômica, psicológica, mitológica, sociológica, mas estudamos estas dimensões separadamente, e não umas em relação com as outras. O princípio de separação torna-nos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu contexto, mas nos torna cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e o seu contexto.
Além disso, o método experimental, que permite tirar um "corpo" do seu meio natural e colocá-Io num meio artificial, é útil, mas tem os seus limites, pois não podemos estar separados do nosso meio ambiente; o conhecimento de nós próprios não é possível, se nos isolarmos do meio em que vivemos. Não seríamos seres humanos, indivíduos humanos, se não tivéssemos crescido num ambiente cultural onde aprendemos a falar, e não seríamos seres humanos vivos se não nos alimentássemos de elementos e alimentos provenientes do meio natural.
Por outro lado, durante muito tempo, a ciência ocidental foi reducionista (tentou reduzir o conhecimento do conjunto ao conhecimento das partes que o constituem, pensando que podíamos conhecer o todo se conhecêssemos as partes); tal conhecimento ignora o fenômeno mais importante, que podemos qualificar de sistêmico, da palavra sistema, conjunto organizado de partes diferentes, produtor de qualidades que não existiriam se as partes estivessem isoladas umas as outras. É isto que podemos chamar “emergências".
Por exemplo, somos a vida. Um ser humano é constituído por moléculas, moléculas químicas, moléculas de ácidos, ácidos nucléicos e aminoácidos. Nenhuma destas macromoléculas tem, por si só. as qualidades que dão a vida; a organização viva, feita destas moléculas, organização complexa, tem um certo número de qualidades que emergem. qualidades de autoprodução. auto-reprodução, autodesenvolvimento, comunicação, movimento etc. Não podemos, portanto, compreender o ser humano apenas através dos elementos que o constituem. Se observarmos uma sociedade, verificaremos que nela há interações entre os indivíduos, mas essas interações formam um conjunto e a sociedade, como tal, é possuidora de uma língua e de uma cultura que transmite aos indivíduos; essas "emergências sociais" permitem o desenvolvimento destes. É necessário um modo de conhecimento que permita compreender como as organizações, os sistemas, produzem as qualidades fundamentais do nosso mundo.
Tratemos agora do fenômeno da auto-organização. O ser humano é autônomo, mas a sua autonomia depende do meio exterior. Se temos necessidade de nos alimentar, é porque o nosso organismo trabalha continuamente, degrada a sua energia e tem necessidade de renová-Ia, extraindo-a do mundo exterior sob a forma já organizada dos alimentos vegetais ou animais. Por isso, para ser autônomo, tenho de depender do meio exterior; para ser um espírito autônomo, tenho de depender da cultura de que alimento os meus conhecimentos. a minha faculdade de conhecimento e a minha faculdade de julgar. Assim, somos levados a pensar conjuntamente em duas noções que até agora se encontravam separados, porque durante muito tempo não podíamos compreender a autonomia do ponto de vista científico, visto que o conhecimento científico clássico só conhecia o determinismo. A autonomia só podia ser pensada do ponto de vista puramente metafísico, quer dizer, excluindo qualquer laço material. Por um lado, tínhamos uma ciência com dependência, mas sem autonomia, e por outro lado uma filosofia com autonomia, mas sem conceber a dependência. Ora, penso que o pensamento complexo deve ligar a autonomia e a dependência.
A nossa educação nos habituou a uma concepção linear da causalidade. Temos causas que produzem efeitos. Ora, uma das idéias mais importantes que me parecem ter surgido nos últimos 50 anos foi a da circularidade, cristalizada pela primeira vez por um especialista em cibernética. Para compreender a idéia de circularidade retroativa, podemos imaginar um sistema de aquecimento central: uma caldeira alimenta os radiadores; quando se atingiu a temperatura desejada, um termostato faz parar o funcionamento da caldeira; se a temperatura baixa, o termostato faz funcionar a caldeira de novo. Há, em conseqüência, um sistema onde o efeito atua retroativamente sobre a causa.
Passamos de uma visão linear a uma visão circular. A causalidade retroativa possibilita compreender um fenômeno de autonomia térmica: quando faz frio lá fora, o compartimento fica quente e, paradoxalmente, quanto mais frio faz lá fora, mais quente fica o interior do compartimento. Esta autonomia, provocada pela regulação (circularidade retroativa), é ela própria produzida por uma circularidade mais intensa, chamada circularidade autoprodutiva. Em que consiste esta circularidade? Consiste no fato de produtos e efeitos serem necessários ao produtor e ao causador.
Tomemos dois exemplos: a vida e a sociedade. A vida é um sistema de reprodução que produz os indivíduos. Somos produtos da reprodução dos nossos pais. Mas, para que este processo de reprodução continue, é necessário que nós próprios nos tomemos produtores e reprodutores de nossos filhos. Somos, portanto, produtos e produtores no processo da vida. Da mesma maneira. Somos produtores da sociedade, porque sem indivíduos humanos não existiria a sociedade mas, uma vez que a sociedade existe, com a sua cultura, com os seus interditos, com as suas normas, com as suas leis, com as suas regras, produz-nos como indivíduos e, uma vez mais, somos produtos produtores.
Produzimos a sociedade que nos produz. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que somos não só uma pequena parte de um todo, o todo social, mas que esse todo está no interior de nós próprios, ou seja, temos as regras sociais, a linguagem social, a cultura e normas sociais em nosso interior. Segundo este princípio, não só a parte está no todo como o todo está na parte. Isto acarreta conseqüências muito importantes porque, se quisermos julgar qualquer coisa, a nossa sociedade ou uma sociedade exterior, a maneira mais ingênua de o fazer é crer (pensar) que temos o ponto de vista verdadeiro e objetivo da sociedade, porque ignoramos que a sociedade está em nós e ignoramos que somos uma pequena parte da sociedade. Esta concepção de pensamento dá-nos uma lição de prudência, de método e de modéstia.
Devo indicar, neste momento da minha exposição, que o pensamento complexo nos abre o caminho para compreender melhor os problemas humanos. Em primeiro lugar, não devemos esquecer que somos seres trinitários, ou seja, somos triplos em um só. Somos indivíduos, membros de uma espécie biológica chamada Homo sapiens, e somos, ao mesmo tempo, seres sociais. Temos estas três naturezas numa só. Penso que é importante sabê-Io, porque, de uma maneira geral, o nosso modo de pensamento mais habitual nos toma difícil conceber um elo entre estas três naturezas e saber se existe unidade na humanidade ou diversidade, heterogeneidade e, conseqüentemente, ausência de unidade. Tema polêmico a partir do século XVIII. Há quem diga que a natureza humana é una, e que os chineses ou africanos têm uma natureza igual à nossa e por isso, como nós, amores, tristezas, alegrias, felicidades. Outros pensadores, como os culturalistas, dizem que somos diferentes de cultura para cultura, não existindo verdadeira unidade humana.
Foi muitas vezes difícil fazer compreender que o "um" pode ser "múltiplo", e que o "múltiplo" é suscetível de unidade. Que, por exemplo, do ponto de vista do ser humano, há certamente unidade genética, que todos os seres humanos têm o mesmo patrimônio genético e há unidade cerebral; por essa razão, todos os seres humanos têm as mesmas atitudes cerebrais fundamentais. É também certo que os seres humanos têm uma identidade profunda pelo fato de poder desenvolver a sua nacionalidade e por serem afetivos, capazes, todos eles, de sorrir, de rir e de chorar. A observação de um etnólogo alemão sobre uma jovem surda, muda e cega de nascença demonstrou que, por ela rir, chorar e sorrir, não tinha aprendido, através do seu meio cultural, estas manifestações afetivas.
Há, logo, a unidade fundamental do ser humano; mas, ao mesmo tempo, sabemos que certas civilizações inibem as lágrimas, enquanto outras permitem a sua expressão; que sorrimos em condições diferentes numas e noutras; o riso, as lágrimas e o sorriso são diferentemente modulados segundo as culturas, mas devemos saber sobretudo que, a partir da mesma estrutura fundamental da linguagem, se criou uma diversidade inacreditável de línguas ao longo do desenvolvimento da espécie humana, e que as culturas geraram riquezas extraordinárias; o tesouro da humanidade é a sua diversidade. Esta não só é compatível com a unidade fundamental, mas produzida pelas possibilidades do ser humano.
Compreender a unidade e a diversidade é muito importante hoje, visto estarmos num processo de mundialização que leva a reconhecer a unidade dos problemas para todos os seres humanos onde quer que estejam; ao mesmo tempo, é preciso preservar a riqueza da humanidade, ou seja, a diversidade cultural; vemos, por exemplo, que as diversidades não são só as das nações, mas estão também no interior destas; cada província, cada região, tem a sua singularidade cultural, a qual deve guardar ciosamente.
Há, no mesmo sentido, o problema com o qual estive confrontado quando quis escrever meu livro "O Homem e a morte": a multidimensionalidade humana. A interrogação que me coloquei desde o início foi a seguinte: o homem está, como todos os seres biológicos, submetido à morte; por isso, no domínio da morte, é semelhante a todos os outros seres vivos; mas o homem é o único ser vivo que acredita existir uma vida após a morte, que pratica ritos fúnebres, que tem uma mitologia da morte, porque acredita que a morte existe, quer um renascimento, quer a sobrevivência de um fantasma, quer a ressurreição etc. A realidade humana é. pois, por um lado, biológica e, por outro, autobiológica, quer dizer, mitológica.
Um dos traços importantes do meu trabalho foi deixar de subestimar os aspectos imaginário e mitológicos do ser humano. Algo que me tinha deveras impressionado quando assisti a uma cerimônia de Candomblé no Brasil, e da qual participei, foi constatar que, num momento determinado, os participantes, os crentes, invocam os espíritos ou deuses tais como Iemanjá; num dado momento, um dos espíritos encama num dos participantes e fala através deste. Além disso, é possível a presença de vários espíritos. O que significa tudo isto? Significa que os deuses têm uma existência real; essa existência é-lhes conferida pela comunidade dos crentes, pela fé, pelo rito. Mas uma vez que o deus existe, é capaz de nos possuir, e é essa a relação particular que nutrimos com os "deuses", ou com o nosso "Deus", ou as com nossas idéias.
Isso significa ainda que damos vida às nossas idéias e, uma vez que lhes damos vida, são elas que indicam o nosso comportamento, que nos mandam matar ou morrer por elas; vale dizer que tais produtos são os nossos próprios produtores, e que as realidades imaginária e mitológica são um aspecto fundamental da realidade humana.
Do mesmo modo, penso que devemos considerar a história humana de maneira complexa. Ora, entre as maneiras não complexas de considerar a história humana, a primeira foi a de que esta era uma sucessão de batalhas, de golpes de Estado, de mudanças de reino, de acontecimentos importantes, de acidentes, de guerras. Uma segunda maneira consistiu em julgar que os acidentes, as guerras, as mudanças de reino, eram acontecimentos superficiais enquanto, na realidade, existiria um movimento ascendente, o do progresso; as leis da história estariam escritas no decurso da humanidade e, se surgissem acidentes, seriam provisórios.
Primeiramente, é necessário unir estas duas concepções: a dos acidentes, das perturbações, aquilo que Shakespeare chamou "o barulho e o furor" e, por outro lado, as determinações, os determinismos. Isto se aplica também à história do Universo, que começamos a conhecer como uma história que nasceu, talvez, de uma catástrofe gigantesca, da qual surgiu o nosso mundo, criado através de enormes destruições, porque se pensa que desde o início a matéria provocou o genocídio da anti-matéria ou, ao menos, essa anti-matéria desapareceu. Em seguida, houve o choque das estrelas, a colisão das galáxias, explosões...
Ora, o mundo produz, por um lado, galáxias, estrelas, ordem no céu e, ao mesmo tempo, forma-se por entre a desordem; da mesma maneira, a história da terra é uma história atormentada. Pensa-se que, na origem, foram os detritos de um sol anterior que explodiu que se aglomeraram, tendo-se, a partir daí, produzido um fenômeno de auto-organização da terra, com, num dado momento, o aparecimento da primeira célula viva. Mas a verdadeira história da vida ocorreu através de convulsões e catástrofes; houve um acidente no final da era primária em que 97% das espécies vivas dessa época desapareceram; houve o famoso acidente em que os dinossauros morreram, e que parece ser a conseqüência de um meteorito conjugado com uma enorme explosão vulcânica. A história da nossa terra é acidental, e através desses acidentes houve a extraordinária proliferação de formas vegetais e animais, das quais, de um ramo de um ramo de um ramo... da evolução animal surgiu o ser humano e, finalmente, a consciência humana.
O sentido da evolução não era o de produzir por todo lado a consciência. Foi o ramo de um ramo de um ramo que produziu a humanidade. Somos, portanto, um produto "desviado" da história do mundo; isto nos permite compreender que a evolução não é qualquer coisa que avança frontalmente, majestosamente, como um rio, mas parte sempre de um "desvio" que começa e consegue impor-se, toma-se uma grande tendência e triunfa, o que se aplica à história das idéias; no início, Moisés é um egípcio "desencaminhado" ou "desviado" que se afastou da sua religião quando fundou o judaísmo; o "desencaminhamento" de Jesus foi acrescido pelo de Paulo, quando este disse não haver nem judeus, nem gentios. Maomé, Karl Marx e Lutero foram seres "desencaminhados" ou "desviados"; certos "desencaminhamentos" enraízam-se e transformam-se em tendências fortes.
Isso deve tornar mais complexa a nossa visão da história e levar-nos a compreender a incerteza do nosso tempo, visto que não há progresso necessário e inelutável; sabemos que todos os progressos adquiridos podem ser destruídos pelos nossos inimigos mais implacáveis: nós mesmos, dado que hoje a humanidade é a maior inimiga da humanidade. Sabemos, atualmente, que o progresso deve ser regenerado; sabemos ainda que a barbárie constitui uma ameaça, e vivemos mais do que nunca na incerteza, porque ninguém pode adivinhar o que será o dia de amanhã. O nosso destino é, pois, incerto, e ninguém sabe qual o destino do Cosmos.
Devemos, porém, poder situar-nos nesta incerteza. A nossa situação é, em virtude desta constatação, extremamente complexa, porque somos, integralmente, filhos do Cosmos e estranhos a esse mesmo Cosmos. Poderia exemplificar com o organismo humano, mas vou tomar simplesmente o exemplo de um copo de vinho do Porto. Se pegarem um copo de vinho do Porto e o interrogarem, podem ter a certeza de que nesse vinho do Porto há partículas que se formaram nos primeiros segundos do Universo, ou seja, há cerca de sete a quinze bilhões de anos; há também o hidrogênio, um dos primeiros elementos a ser formado no Universo, e produtos do átomo do carbono, formado quando da existência do sol anterior ao nosso. No copo de vinho do Porto, há a conjugação de macromoléculas que se juntaram na terra para dar origem à vida e há ainda a evolução do mundo vegetal, a evolução animal, até o homem, e a evolução técnica que permitiu ao ser humano extrair o sumo da uva e transformá-Io, através da fermentação, em vinho. Hoje, existem técnicas mais evoluídas, mais sofisticadas, da informática, que permitem controlar, nos depósitos, a fermentação desse vinho que vai transformar-se em vinho do Porto. Dito de outra maneira, num copo de vinho do Porto temos toda a história do Cosmos e, simultaneamente, a originalidade de uma bebida encontrada apenas na região do Douro.
Somos filhos da natureza viva da terra e estrangeiros a nós próprios. Esta reflexão leva-nos a abandonar a idéia que considerava o ser humano como centro do mundo, mestre e dominador da natureza, defendida por grandes filósofos ocidentais como Bacon, Descartes, Buffon, Karl Marx. Hoje, essa ambição parece-nos completamente irrisória, porque vivemos num planeta minúsculo, satélite de um pequeno sol de segunda classe, que faz parte de uma galáxia extremamente periférica; estamos, por essa razão, perdidos no Universo.
Mas, se devemos abandonar a visão que faz do homem o centro do mundo, devemos salvaguardar a visão humanista que nos ensina que é necessário salvar a humanidade e civilizar a terra. Abandonemos a missão de Prometeu e tomemo-nos seres terrestres, quer dizer, cidadãos da terra, o que nos remete à idéia por mim desenvolvida no livro Terra-Pátria; para compreendê-Ia, é necessário refletir sobre a palavra "Pátria". A palavra "Pátria" significa três coisas: identidade comum, comunidade de origem e de destino e comunidade de idéias.
· Identidade comum, Como já tive a ocasião de referir.
· Comunidade de origem e comunidade de destino, segundo os dados do conhecimento da hominização e da pré-história: parece haver uma origem comum da humanidade - o continente africano. É possível que o Homo sapiens tenha partido da África e povoado o mundo, assim como é possível que os antepassados do Homo sapiens, através do processo de mestiçagem, tenham suscitado na Europa, na Ásia e na África, o aparecimento da nossa espécie; de qualquer maneira, há uma comunidade de origem pertencente ao ramo particular da evolução dos seres vivos. Comunidade de destino: fazer parte de uma Pátria significa participar de um destino comum; ora, esse destino relacionado com a pátria é um destino que nos vem do passado. Participa-se da Pátria Portuguesa porque se aprende a história de Portugal e toma-se parte nas suas dificuldades, nos seus sofrimentos, nas suas grandezas e nas suas glórias; incorpora-se o destino comum dos antepassados. A idéia de comunidade de destino terrestre é uma idéia recente. Vem da era planetária, quer dizer, do momento em que os fragmentos dispersos da humanidade começaram a encontrar-se; no início, de maneira extremamente violenta e brutal, através das conquistas e da colonização. Hoje, todos os seres humanos, apesar de viverem situações diferentes, têm os mesmos problemas fundamentais de vida e morte. Temos necessidade de nos proteger de desastres que podem destruir o homem.
· Comunidade de idéias: esta noção faz-nos abandonar a alternativa banal segundo a qual, no caso de sermos cosmopolitas, não teríamos raízes e, no caso de termos Pátria, seria uma Pátria singular fechada sobre ela própria. A idéia de "Terra-Pátria" não nos desenraíza, ao contrário; estamos enraizados em nosso destino terrestre, o qual engloba e respeita todas as Pátrias. Podemos ser membros de várias Pátrias concêntricas. Sinto-me profundamente membro da pátria francesa, mediterrâneo, europeu e cidadão da Terra. Podemos viver diferentes Pátrias de maneira concêntrica em vez de negar uma, privilegiando outra. O pensamento complexo conduz-nos a uma série de problemas fundamentais do destino humano, que depende, sobretudo, da nossa capacidade de compreender os nossos problemas essenciais, contextualizando-os, globalizando-os, interligando-os: e da nossa capacidade de enfrentar a incerteza e de encontrar os meios que nos permitam navegar num futuro incerto, erguendo ao alto a nossa coragem e a nossa esperança.
Vencer a especialização
Enquanto a cultura geral comportava a possibilidade de buscar a contextualização de toda informação ou idéia, a cultura científica e técnica, por causa de sua característica disciplinar e especializada, separa e compartimenta os saberes, tomando cada vez mais difícil a colocação destes num contexto qualquer. Além disso, até a metade do século XX, a maioria das ciências tinha por método de conhecimento a redução (do conhecimento de um todo ao conhecimento das partes que o compõem), por conceito fundamental o determinismo, isto é, a ocultação do acaso, do novo, da invenção, e a aplicação da lógica mecânica da máquina artificial aos problemas vivos, humanos e sociais.
A especialização abstrai, extrai um objeto de seu contexto e de seu conjunto, rejeita os laços e a intercomunicação do objeto com o seu meio, insere-o no compartimento da disciplina, cujas fronteiras quebram arbitrariamente a sistemicidade (a relação de uma parte com o todo) e a multidimensionalidade dos fenômenos, e conduz à abstração matemática, a qual opera uma cisão com o concreto, privilegiando tudo aquilo que é calculável e formalizável.
Assim, a economia, a ciência social matematicamente mais avançada, é também a ciência social e humanamente mais fechada, pois se abstrai das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas, ecológicas etc, inseparáveis das atividades econômicas. Por isso, os seus experts são cada vez mais incapazes de prever e de predizer o desenvolvimento econômico, mesmo a curto prazo.
O conhecimento deve certamente utilizar a abstração, mas procurando construir-se em referência a um contexto. A compreensão de dados particulares exige a ativação da inteligência geral e a mobilização dos conhecimentos de conjunto.
Marcel Mauss dizia: "É preciso recompor o todo". Acrescentemos: é preciso mobilizar o todo. Certo, é impossível conhecer tudo do mundo ou captar todas as suas multiformes transformações. Mas, por mais aleatório e difícil que seja, o conhecimento dos problemas essenciais do mundo deve ser tentado para evitar a imbecilidade cognitiva. Ainda mais que o contexto, hoje, de todo conhecimento político, econômico, antropológico, ecológico etc, é o próprio mundo. Eis o problema universal para todo cidadão: como adquirir a possibilidade de articular e organizar as informações sobre o mundo. Em verdade, para articulá-Ias e organizá-Ias, necessita-se de uma reforma de pensamento.
A falsa racionalidade
A falsa racionalidade – a racionalização abstrata e unidimensional – triunfa atualmente por toda parte. As mais monumentais obras-primas dessa racionalidade tecnoburocrática foram realizadas na URSS, onde, por exemplo, desviaram-se o curso dos rios para irrigar nas horas mais quentes hectares sem árvores de cultivo de algodão, gerando a salinização do solo, a volatilização das águas subterrâneas, o esgotamento do mar de Aral. Infelizmente depois do desabamento do Império, os novos dirigentes recorreram a experts liberais do Oeste que, ignorando deliberadamente a necessidade de instituições, de leis e de regras numa economia competitiva de mercado, não elaboram a indispensável estratégia complexa. Entretanto, Maurice Allais – economista liberal – havia indicado que seria necessário planificar a desplanificação e programar a desprogramação. O resultado de tudo isso são as catástrofes humanas, cujas vítimas não são contabilizadas e não têm as garantias dos atingidos pelas catástrofes naturais.
A inteligência parcelar, compartimentada, mecânica, disjuntiva, reducionista, quebra o complexo do mundo, produz fragmentos, fraciona os problemas, separa o que é ligado, unidimensionaliza o multidimensional. Trata-se de uma inteligência ao mesmo tempo míope, presbita, daltônica, zarolha. Elimina na casca todas as possibilidades de compreensão e de reflexão, matando assim todas as chances de julgamento corretivo ou de visão a longo termo. Quanto mais os problemas se tomam multidimensionais, mais há incapacidade para pensar essa multidimensionalidade; quanto mais a crise avança, mais progride a incapacidade de pensá-Ia; quanto mais os problemas se tomam planetários, mais se tornam impensados. Incapaz de considerar o contexto e o complexo planetário, a inteligência cega produz inconsciência e irresponsabilidade.
Compreendemos então um problema essencial: complementar o pensamento que separa com outro que une. Complexus significa originariamente o que se tece junto. O pensamento complexo, portanto, busca distinguir (mas não separar) e ligar. Ao mesmo tempo, impõe-se, como vimos acima, outro problema crucial: tratar a incerteza. Por quê? Porque por toda parte, nas ciências, o dogma de um determinismo universal desabou, enquanto a lógica, chave-mestra da certeza do raciocínio, revelou incertezas na indução, impossibilidades de decisão na dedução e limites no princípio do terceiro incluído. Assim, o objetivo do pensamento complexo é ao mesmo tempo unir (contextualizar e globalizar) e aceitar o desafio da incerteza. Como?
Princípios
Podemos estabelecer alguns princípios, complementares e interdependentes, como guias para pensar a complexidade.
· Princípio sistêmico ou organizacional: liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo, conforme a ponte indicada por Pascal e mencionada antes: "Tenho por impossível conhecer o todo sem conhecer as partes, e conhecer as partes sem conhecer o todo". A idéia sistêmica, oposta à reducionista, entende que "o todo é mais do que a soma das partes". Do átomo à estrela, da bactéria ao homem e à sociedade, a organização do todo produz qualidades ou propriedades novas em relação às partes consideradas isoladamente: as emergências. A organização do ser vivo gera qualidades desconhecidas de seus componentes físico-químicos. Acrescentemos que o todo é menos do que a soma das partes, cujas qualidades são inibidas pela organização de conjunto.
· Princípio "hologramático" (inspirado no holograma, no qual cada ponto contém a quase totalidade da informação do objeto representado): coloca em evidência o aparente paradoxo dos Sistemas complexos, onde não somente a parte está no todo, mas o todo se inscreve na parte. Cada célula é parte do todo – organismo global – mas o próprio todo está na parte: a totalidade do patrimônio genético está presente em cada célula individual; a sociedade como todo, aparece em cada indivíduo, através da linguagem, da cultura, das normas.
· Princípio do anel retroativo: introduzido por Norbert Wiener, permite o conhecimento dos processos de auto-regulação. Rompe com o princípio de causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e este sobre a causa, como no sistema de aquecimento no qual o termostato regula a situação da caldeira. Esse mecanismo de regulação permite a autonomia do sistema, neste caso, a autonomia térmica de um apartamento em relação ao frio exterior. De maneira mais complexa, a "homeostase" de um organismo vivo é um conjunto de processos reguladores fundados sobre múltiplas retroações. O anel de retroação (ou feedback) possibilita, na sua forma negativa, reduzir o desvio e, assim, estabilizar um sistema. Na sua forma mais positiva, o feedback é um mecanismo amplificador; por exemplo, na situação de apogeu de um conflito: a violência de um protagonista desencadeia uma reação violenta que, por sua vez, determina outra reação ainda mais violenta. Inflacionistas ou estabilizadoras, as retroações são numerosas nos fenômenos econômicos, sociais, políticos ou psicológicos.
· Princípio do anel recursivo: supera a noção de regulação com a de autoprodução e auto-organização. É um anel gerador, no qual os produtos e os efeitos são produtores e causadores do que os produz. Nós, indivíduos, somos os produtos de um sistema de reprodução oriundo do fundo dos tempos. Mas esse sistema só pode reproduzir-se se nós mesmos nos tomamos produtores pelo acasalamento. Os indivíduos humanos produzem a sociedade nas – e através de – suas interações, mas a sociedade, enquanto todo emergente, produz a humanidade desses indivíduos aportando-lhes a linguagem e a cultura.
· Princípio de auto-eco-organização (autonomia/dependência): os seres vivos são auto-organizadores que se autoproduzem incessantemente, e através disso despendem energia para salvaguardar a própria autonomia. Como têm necessidade de extrair energia, informação e organização no próprio meio ambiente, a autonomia deles é inseparável dessa dependência, e torna-se imperativo concebê-Ios como auto-eco-organizadores. O princípio de auto-eco-organização vale evidentemente de maneira específica para os humanos, que desenvolvem a sua autonomia na dependência da cultura, e para as sociedades que dependem do meio geo-ecológico. Um aspecto determinante da auto-eco-organização é que esta se regenera em permanência a partir da morte de suas células,conforme a fórmula de Heráclito, "viver de morte, morrer de vida", e que as duas idéias antagônicas de morte e de vida são aí complementares, mesmo permanecendo antagônicas.
· Princípio dialógico: vem justamente de ser ilustrado pela fórmula heraclitoniana. Une dois princípios ou noções devendo excluir um ao outro, mas que são indissociáveis numa mesma realidade. Deve-se conceber uma dialógica ordem/desordem/organização desde o nascimento do universo: a partir de uma agitação calorífica (desordem) onde, em certas condições (encontros ao acaso), princípios de ordem permitirão a constituição de núcleos, átomos, galáxias e estrelas. Tem-se ainda essa dialógica quando da emergência da vida através dos encontros entre macromoléculas no interior de uma espécie de anel autoprodutor, que terminará por se tornar auto-organização viva. Sob as formas mais diversas, a dialógica entre a ordem, a desordem e a organização, através de inumeráveis inter-retroações, está constantemente em ação nos mundos físico, biológico e humano. A dialógica permite assumir racionalmente a associação de noções contraditórias para conceber um mesmo fenômeno complexo. Niels Bohr reconheceu, por exemplo, a necessidade de ver as partículas físicas ao mesmo tempo como corpúsculos e como ondas. Nós mesmos somos seres separados e autônomos, fazendo parte de duas continuidades inseparáveis, a espécie e a sociedade. Quando se considera a espécie ou a sociedade, o indivíduo desaparece; quando se considera o indivíduo, a espécie e a sociedade desaparecem. O pensamento complexo assume dialogicamente os dois termos que tendem a se excluir.
· Princípio da re-introdução daquele que conhece em todo conhecimento: esse princípio opera a restauração do sujeito e ilumina a problemática cognitiva central: da percepção à teoria científica, todo conhecimento é uma reconstrução/tradução por um espírito/cérebro numa certa cultura e num determinado tempo.
Eis alguns dos princípios que guiam os procedimentos cognitivos do pensamento complexo. Não se trata, de forma alguma, de um pensamento que expulsa a certeza com a incerteza, a separação com a inseparabilidade, a lógica para autorizar-se todas as transgressões. Adémarche consiste, ao contrário, num ir e vir constantes entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o inseparável. Ela utiliza a lógica clássica e os princípios de identidade, de não-contradição, de dedução, de indução, mas conhece-Ihes os limites e sabe que, em certos casos, deve-se transgredi-Ios.
Não se trata portanto de abandonar os princípios de ordem, de separabilidade e de lógica – mas de integrá-Ios numa concepção mais rica. Não se trata de opor um holismo global vazio ao reducionismo mutilante. Trata-se de repor as partes na totalidade, de articular os princípios de ordem e de desordem, de separação e de união, de autonomia e de dependência, em dialógica (complementares, concorrentes e antagônicos) no universo.
Em suma, o pensamento complexo não é o contrário do pensamento simplificador, mas integra este; como diria Hegel, ele opera a união da simplicidade e da complexidade e, mesmo no meta-sistema constituído, faz aparecer a sua própria simplicidade. O paradigma da complexidade pode ser enunciado não menos simplesmente que o da simplificação: este impõe separar e reduzir; aquele une enquanto distingue.
O pano de fundo filosófico
Encontram-se, na história da filosofia ocidental e oriental, numerosos elementos e premissas de um pensamento da complexidade. Desde a Antigüidade, o pensamento chinês funda-se sobre a relação dialógica (complementar e antagônica) entre o yin e o yang e, segundo Lao Tsé, a união dos contrários caracteriza a realidade. No século XVII, Fang Yizhi formula um verdadeiro princípio de complexidade. No Ocidente, Heráclito estabeleceu a necessidade de associar termos contraditórios. Na idade clássica, Pascal é o pensador chave da complexidade. Mais tarde. Kant pôs em evidência os limites e as "aporias" da razão. Leibniz formula o princípio da unidade complexa, da unidade do múltiplo.
Spinoza aporta a idéia de autoprodução do mundo. Em Hegel, essa autoconstituição torna-se o romance épico no qual o espírito emerge da natureza para atingir a sua realização, e sua dialética, prolongada pela de Marx, anuncia a dialógica. Nietzsche anunciou a crise dos fundamentos da certeza. No meta-marxismo, tem-se, com Adorno, Horkheimer e o Lukács tardio, não somente numerosos elementos de uma crítica da razão clássica, mas muitos alimentos para uma concepção da complexidade.
No século XIX, enquanto a ciência ignorava o individual, o singular, o concreto e o histórico, a literatura e singularmente o romance revelaram a complexidade humana, de Balzac a Dostoievski e Proust.
Na época contemporânea, o pensamento complexo elabora-se nos interstícios das disciplinas, a partir de pensadores matemáticos (Wiener, von Neumann, von Foerster), especialistas em termodinâmica (Prigogine), biofísicos (Atlan), filósofos (Castoriadis). As duas revoluções científicas do século só podiam estimulá-lo. A primeira revolução introduz a incerteza com a termodinâmica, a física quântica e a cosmofísica, desencadeando as reflexões epistemológicas de Popper, Kuhn, Holton, Lakatos. Feyerabend; estes mostraram que a ciência não era a certeza, mas a hipótese; que uma teoria provada não o era definitivamente, e permanecia "falseável", que havia do não-científico (postulados, paradigmas, themata) no coração da própria cientificidade.
A segunda revolução científica – mais recente, ainda inacabada –, a revolução sistêmica, introduz a organização nas ciências da terra e a ciência ecológica; ela se prolongará, sem dúvida, em revolução de auto-eco-organização na biologia e na sociologia.
O pensamento complexo é, portanto, essencialmente aquele que trata com a incerteza e consegue conceber a organização. Apto a unir, contratualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo a reconhecer o singular, o individual e o concreto.
O pensamento complexo não se reduz nem à ciência, nem à filosofia, mas permite a comunicação entre elas, servindo-Ihes de ponte. O modo complexo de pensar não tem utilidade somente nos problemas organizacionais, sociais e políticos, pois um pensamento que enfrenta a incerteza pode esclarecer as estratégias no nosso mundo incerto; o pensamento que une pode iluminar uma ética da religação ou da solidariedade. O pensamento da complexidade tem igualmente seus prolongamentos existenciais ao postular a compreensão entre os homens.
Por uma reforma da universidade do pensamento
A complexidade exige uma reforma de pensamento, o que pressupõe mudar a universidade. Como fazê-Ia? Há uma dupla missão: a universidade deve se adaptar à sociedade ou a sociedade deve se adaptar à universidade? Todos adivinharão que recusarei a escolha e tentarei ultrapassá-Ia de forma complexa. Ainda que tenha antecedentes em Bagdá e em Fez, a universidade, como se disse com freqüência, é o grande presente da Europa medieval à Europa moderna. Em menos de dois séculos, uma constelação de universidades jorrou de Bolonha a Upsala, de Coimbra a Praga. A universidade é conservadora, regeneradora, geradora. Conserva, memoriza, integra, ritualiza um patrimônio cognitivo; regenera-o pelo reexame, atualizando-o, transmitindo-o; gera saber e cultura que entram nessa herança.
A esse título, a universidade tem uma missão e uma função transecular que, via presente, vai do passado para o futuro; missão transnacional que guardou a despeito da tendência ao fechamento nacionalista das nações modernas. E dispõe de uma autonomia que lhe permite realizar essa missão.
Segundo os dois sentidos do termo conservação, o caráter conservador da universidade pode ser vital ou estéril. A conservação é vital se ela significa salvaguarda e preservação, pois só se pode preparar um futuro salvando um passado, e estamos num século em que múltiplas e potentes forças de desintegração cultural atuam. Mas a conservação é estéril se dogmática, congelada, rígida. Assim, a Sorbonne condenou todos os progressos científicos do século XVII, e a ciência moderna formou-se em grande parte fora das universidades ao longo desse século.
Mas a universidade soube responder ao desafio do desenvolvimento das ciências operando sua grande mutação no século XIX. Ela se laicizou, isto é, abriu-se à grande problematização generalizada e fundamental oriunda do Renascimento, que diz respeito ao mundo, à natureza, à vida, ao homem, a Deus. A universidade tomou-se o lugar por excelência da problematização, recolhendo nela a essência da cultura européia moderna, e através disso se inscreveu mais profundamente na sua missão transecular, reatando com a Antigüidade grega e romana, e inclinando-se para um futuro cognitivo a descobrir ou conquistar.
A primeira mutação institucional se opera em Berlim, em 1809, quando Humboldt conta com o apoio de um "déspota esclarecido". A laicização é a base da reforma; ela estabelece a autonomia da universidade em relação à religião e ao poder; instaura a liberdade interior (o princípio da livre consciência); instala de maneira geral a problematização.
A reforma introduz as ciências modernas, com a criação de departamentos que vão se multiplicar com as novas ciências. A universidade vai desde então fazer coexistir – infelizmente apenas coexistir, e não comunicar – duas culturas, a cultura das humanidades e a cultura da cientificidade.
Ao criar os departamentos, Humboldt tinha muito bem visto o caráter transecular da integração das ciências na universidade. Para ele, a universidade não podia ter por vocação direta uma formação profissional (conveniente para as escolas técnicas), mas uma vocação indireta pela formação de uma atitude de pesquisa.
De onde a dupla função paradoxal da universidade: adaptar-se à modernidade científica e integrá-Ia, responder às necessidades fundamentais de formação, fornecer professores às novas profissões técnicas e outras, mas também fornecer um ensino meta-profissional, meta-técnico.
Aqui, reencontramos a missão transecular pela qual a universidade conclama a sociedade a adotar sua mensagem e suas normas:
· Inocular na sociedade uma cultura que não é feita para as formas provisórias ou efêmeras do hic et nunc, mas que é, contudo, feita para ajudar os cidadãos a viver o destino hic et nunc.
· Defender, ilustrar e promover no mundo social e político os valores intrínsecos à cultura universitária: autonomia da consciência, problematização (com sua conseqüência, que é a manutenção da pesquisa aberta e plural), primado da verdade sobre a utilidade, a ética do conhecimento.
De onde a vocação expressa na dedicatória do frontão da Universidade de Heidelberg: "Ao espírito vivo".
Há complementaridade e antagonismo entre as duas missões: adaptar-se à sociedade e adaptar a si a sociedade – uma remete a outra, num círculo que deveria ser produtivo. Não se trata somente de modernizar a cultura, trata-se de culturalizar a modernidade.
Os desafios do século XX
O século XX impôs vários desafios à dupla missão. Há antes de tudo a pressão super-adaptativa que força a conformar o ensino e a pesquisa às demandas econômicas, técnicas, administrativas do momento, a se conformar aos últimos métodos, às últimas receitas no mercado, a reduzir o ensino geral, a marginalizar a cultura humanista. Ora, sempre na vida e na história, a super-adaptação a condições dadas foi não signo de vitalidade, mas anúncio de senilidade e de morte, pela perda da substância inventiva e criadora.
Existe, além disso, a compartimentação e a disjunção entre cultura humanista e cultura científica, acompanhadas pela compartimentação entre as diferentes ciências e disciplinas. A não comunicação entre as duas culturas determina graves conseqüências para ambas. A cultura humanista revitaliza as obras do passado; a cultura científica só valoriza as aquisições do presente. A cultura humanista é uma cultura geral que, via filosofia, ensaio, romance, expõe os problemas humanos fundamentais e reclama a reflexão. A cultura científica suscita um pensamento fadado à teoria, mas não uma reflexão sobre o destino humano e sobre o futuro da própria ciência. A fronteira entre as duas culturas atravessa, de um extremo a outro, a sociologia, mas esta se deixa esquartejar em vez de tentar uma ponte de ligação.
Tudo isso exige uma reforma do pensamento. O saber medieval era demasiado bem organizado e podia tomar a forma de uma "suma" coerente. O saber contemporâneo é disperso, separado, fechado. Já há uma reorganização do saber em curso. A ecologia científica, as ciências da terra, a cosmologia etc, são ciências pluridisciplinares que têm por objeto não um território ou um setor, mas um sistema complexo: o ecossistema e, mais amplamente, a biosfera para a ecologia, o sistema terra para as ciências da terra e, para a cosmologia, a estranha propensão do universo a formar e arruinar os sistemas galácticos e solares.
Por toda parte, se reconhece a necessidade de interdisciplinaridade, esperando o reconhecimento da relevância da transdisciplinaridade, seja para o estudo da saúde, da velhice, da juventude, das cidades. Mas a transdisciplinaridade só é uma solução no caso de uma reforma do pensamento. É preciso substituir um pensamento que separa por um pensamento que une, e essa ligação exige a substituição da causalidade unilinear e unidimensional por uma causalidade em círculo e multi-referencial, assim como a troca da rigidez da lógica clássica por uma dialógica capaz de conceber noções ao mesmo tempo complementares e antagônicas; que o conhecimento da integração das partes num todo seja completada pelo reconhecimento da integração do todo no interior das partes.
A reforma do pensamento permitirá frear a regressão democrática que suscita, em todos os campos da política, a expansão da autoridade dos experts, especialistas de todos os tipos, estreitando progressivamente a competência dos cidadãos, condenados à aceitação ignorante das decisões dos pretensos conhecedores, mas de fato praticantes de uma inteligência cega, posto que parcelar e abstrata, evitando a globalidade e a contextualização dos problemas.
O desenvolvimento de uma democracia cognitiva só é possível numa reorganização do saber, a qual reclama uma reforma do pensamento capaz de permitir não somente a separação para conhecer, mas a ligação do que está separado.
Trata-se de uma reforma muito mais profunda e ampla do que a de uma democratização do ensino universitário e da generalização da condição de estudante. Trata-se de uma reforma não programática, mas paradigmática, que diz respeito à nossa atitude em relação à organização do conhecimento.
Toda reforma desse tipo suscita um paradoxo: não se pode reformar a instituição (as estruturas universitárias) sem a reforma anterior das mentes; mas não é possível reformar as mentes sem antes reformar a instituição. Eis uma impossibilidade lógica, mas é justamente desse tipo de impossibilidade lógica que a vida zomba. Quem educará os educadores? É necessário que eles se auto-eduquem, e se eduquem prestando atenção às gritantes necessidades do século, as quais são encarnadas também pelos estudantes.
Certo, a reforma se anunciará a partir de iniciativas marginais, freqüentemente aberrantes; mas caberá à própria universidade realizar a reforma. No seu relatório anual de 1986, o reitor de Harvard declarou: "Nem o jogo da concorrência, nem os esforços deliberados dos reformadores externos foram capazes de garantir um constante nível elevado de atividades. É a Universidade que deve encarregar-se dessa tarefa vital".
Sim, precisa-se de idéias externas, críticas e contestações de fora, mas é fundamental, sobretudo, a reflexão interna. A reforma virá do interior, através do retomo às fontes do pensamento europeu moderno: a problematização. Hoje, não basta problematizar o homem, deve-se problematizar a ciência, a técnica – o que acreditávamos ser a razão e era, com freqüência. uma abstrata racionalização.
Uma psicologia cognitiva elementar nos lembra algumas evidências que não deveríamos nunca esquecer:
· O cérebro humano é, como o dizia H. Simon, um g.s.p., General Setting Problems e também General Solving Problems. Mais potente é a sua atitude geral, e maior será a sua atitude para tratar de problemas particulares.
· O conhecimento progride, principalmente, não por sofisticação na formalização e na abstração, mas através da capacidade em contextualizar e em globalizar. Essa capacidade necessita de uma cultura geral e diversificada, e, estimulada essa cultura, o pleno emprego da inteligência geral, isto é, o espírito vivo.
Eis a perspectiva para o novo milênio. A universidade deve ultrapassar-se para se reencontrar.
Edgar MORIN. Da necessidade de um pensamento complexo. In: Francisco Menezes Martins e Juremir Machado da Silva (org), Para navegar no século XXI. Porto Alegre: Sulina/Edipucrs. 2000.
Nenhum comentário:
Postar um comentário