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sábado, 9 de julho de 2011

O século XXI começou em Seattle

Edgar Morin (Le Monde, Dez., 1999).

Enfim, um debate, enfim um início. Uma polêmica moderada opunha até novembro os soberanistas integrais aos mundialistas técno-econômico-mercantis. O novo debate se situa além desta oposição congelada. O que aconteceu em Seattle é a tomada de consciência de que o controle da mundialização só pode se efetuar ao nível mundial. Ela comporta portanto  um outro tipo de mundialização que aquela do mercado. Ela incorpora o soberanismo, mas o ultrapassa.
Eu me surpreendi muitas vezes pelo fato de que nada restou da tradição  internacionalista do socialismo, incrustrado no europeísmo para os socais – democratas, ou convertido num recuo nacionalista na fase moribunda do comunismo.
Havia também embriões de cidadania terrestre a partir da tomada de consciência dos perigos expostos pela biosfera, a partir de movimentos como Médicos sem fronteiras, Anistia Internacional, Greenpace, Survival International e de inúmeras ONG.
Havia ainda a contraofensiva, já mundializante, em torno da taxa Jobim, sustentada pelos grupos Attac. Existiam também resistências locais e dispersas às ONG, à super industrialização da agricultura. A deflagração da fome.
Existiam as múltiplas resistências à homogeneização unicamente o mental e cultural, mas se efetuando pelo recuo sobre o local ou o nacional.
Existia também a consciência crescente de que o mercado mundial tinha necessidade de controles e de regulamentações e que sua extensão correspondia a uma nova explosão do capitalismo no mundo. Existia também aqui e lá, ainda vivo entre um pequeno número de intelectuais, um espírito universalista e humanista, que começou a se enraizar e a se concretizar numa consciência propriamente planetária ou terrena.
Ora, tudo isso, que estava disperso, foi repentinamente reunido. O encontro de um “bigodudo” ruralista français, justamente reconhecido como a encarnação de Asterix, e da conferência mundial de Seattle foi o elemento catalítico. Foi constituído de maneira quase espontânea, a partir de associações, de ONG, de experiências locais, uma internacional civil fora dos partidos políticos.
Certamente, o movimento foi rapidamente mobilizado por trotskistas, libertários, comunistas e como de costume, os futuros conflitos et núcleos entre estes sectários correm o risco de deformá-lo e de destruí-lo. Mas agora, de si próprio ,ele encontrou e proclamou uma sentença admirável que exprime de maneira bastante concisa o enredo do debate: “O mundo não é uma mercadoria”. A fórmula nada mais faz do que revelar  a verdade da profecia de Marx denunciando a mercantilização progressiva de todas as coisa, aí subentendidos os vivos e os humanos. Ela denuncia implicitamente a lógica do cálculo que, reinando nos espíritos dos tecnocratas e economistas, está cego aos seres, às paixões, aos sentimentos, às infelicidades e as felicidades humanas. Ela proclama enfim nossa necessidade de responsabilidade sobre o mundo.
Efetivamente, as tomadas de consciência fragmentárias se juntaram em Seattle e se mundializaram. De fato, a mundialização técnico-econômica do decênio dos anos 90 foi uma nova etapa de um processo iniciado no século XVI pela conquistas das Américas, perseguido pela colonização do planeta pelo Ocidente europeu e que, após as descolonizações, sofreu a hegemonia técnico-econômica dos Estados Unidos.
Como eu comentei anteriormente, este processo foi acompanhado e contestado por uma segunda mundialização sempre minoritária, aparecendo com o reconhecimento dos direitos humanos aos Índios da Ámérica ( Bartolomeu de las Casas) e da legitimidade das civilizações não europeias ( de Montaigne a Voltaire).
Esta segunda mundialização se prolongou através da difusão das ideias humanistas e universalistas, elas próprias propulsionadas pela Revolução francesa depois pelas ideias internacionalistas e as primeiras aspirações do mundo  aos Estados Unidos( (Victor Hugo).
Na segunda metade do século XX, apesar da decomposição e da degenerescência dos internacionalismos, apesar efervescentes nacionalistas e dos fanatismos religiosos, verificamos o desenvolvimento dos múltiplos ramos de uma cidadania terrena, preludia de uma tomada de consciência de uma “Terra –Pátria”, diante do enraizamento  nos espíritos sem contudo suprimir as virtudes das diferentes e múltiplas pátrias nacionais. Trata-se de agora em diante de religar não somente da maneira técnico-econômica, mas sobretudo de maneira intelectual, moral e afetiva, os fragmentos dispersos do gênero humano.
Seattle, que devia consagrar o irresistível progresso da mundialização técnico-econômica, viu o nascimento de um novo movimento em escala e amplitude mundiais. Este novo movimento associa um soberanismo de enraizamento, de cultura e de civilização ( que ainda que reconhecendo o Estado Nacional, não é de modo algum o estatismo nacionalista) a uma autêntica consciência dos problemas mundiais assim como uma  nova vontade de agir de agora em diante no nível da associação de todos aqueles que sentem ameaçados pela hegemonia do quantitativo, da rentabilidade, do lucro, da maximização.
Isso, longe de excluir os Estados –Unidos num antiamericanismo limitado, permite associar sues fazendeiros e consumidores aos fazendeiros e consumidores da Europa. Além do mais existe, como insiste José Bové, a inclusão no movimento dos problemas e necessidades dos outros continentes: a enorme massa humana do mundo dito “Em via de desenvolvimento”, que só encontra sua capacidade exportadora no baixo custo de uma mão de obra privada de direitos sindicais; o mundo africano empobrecido pelas monoculturas importadas do Ocidente, que destruiu as agriculturas de subsistência e lançou nos “bidonvilles” ( *aglomerações  de habitações sem as mínimas condições de higiene onde vive a população mais pobre) urbanos os rurais desenraizados. O movimento da segunda mundialização deve se responsabilizar de todos os “Terrestres”. O problema de três ou quatro parceiros com interesses divergentes não pode ser resolvido de imediato, mas os compromissos e  um encaminhamento podem já ser  projetados pelo novo movimento.

Um mundo novo sai do nevoeiro de dezembro de 1999.

Por um lado, podemos ver a hidro formada pela conjunção dos desenvolvimentos da ciência, das técnicas,  do capitalismo, já com uma  convergência formidável na indústria genética. Esses desenvolvimentos, animados pela pesquisa do lucro, da maximização, da rentabilidade, obedecendo a uma lógica calculadora e determinista que é aquela da fabricação e do uso das máquinas artificiais, lógica que se expande em todos os setores da vida humana.
O inimigo não é o solitário capitalismo, que de resto é necessário à economia concorrencial. Além disso, o a hidro contem em si própria os elementos benéficos que podem modificar o curso dos acontecimentos. Assim sendo, as inúmeras disciplinas científicas se reagrupam e desenvolvem um conhecimento complexo, ao contrário do curso simplificador e redutor do século precedente. Os setores científicos cada vez mais importantes, tendo a ecologia como cabeça, esclarecem a Segunda mundização enquanto que outros setores estão cada vez mais integrados na economia do lucro.
As técnicas, incluindo-se as técnicas de informação/computação/comunicação como a Internet, levam consigo  tanto virtualidades emancipadoras quanto virtualidades escravizadoras. De resto, é a mundialização das comunicações que permitiu a formação e a mobilização de uma contestação planetária em Seattle. Mas é uma obediência cega à lógica artificial e à qual do lucro que constitui o grande perigo civilizacional, e mais ainda uma ameaça global sobre o gênero humano: a arma nuclear, a manipulação genética, a degradação ecológica são todas as três filhas do desenvolvimento da tríade ciência/ técnica/ indústria.

E nós assistimos os efeitos desses desenvolvimentos em cadeia.

Primeira cadeia se fechando em si mesma em círculo vicioso: agricultura intensiva., OGM, rentabilidade FORCENÉE na agricultura e na economia, degradação das qualidades dos alimentos, degradação da qualidade da vida, homogeneização dos gêneros da vida, degradação dos meios naturais, dos meios urbanos, da biosfera e da sociosfera, diversidades biológicas culturais, do político ao econômico, precarização do trabalho e destruição das garantias sociais, perda da visão dos problemas fundamentais e dos problemas globais ( os quais , para a maioria, de agora em diante coincidem).
Uma outra cadeia pode formar um círculo virtuosos ligando agricultura biológica à agricultura racional, pesquisa do melhor e não do mais, das qualidades no lugar das quantidades, predominância do ser sobre o ter,  o gozo da aspiração  da plenitude da vida, desejo de salvaguardar as diversidades biológicas e culturais, esforços para regenerar a biosfera, civilizar as cidades, revitalizar os campos. Tudo isso devendo convergir na formalização de uma  política de civilização  levando em conta todos esses aspectos, na tomada de consciência dos problemas globais e fundamentais para o gênero humano, ou seja os cidadãos da Terra que deve se tornar pátria.
Efetivamente, o enraizamento e o alargamento de um patriotismo terrestre formarão a alma da Segunda mundialização que quererá e poderá  talvez domesticar a primeira e civilizar a Terra.
A situação é fundamentalmente complexa. Nós dissemos que a primeira mundialização comporta as contra - correntes positivas nascidas do excesso do desenvolvimento das correntes negativas. A batalha não é somente entre a conferência oficial da primeira mundialização e a expressão do mesmo modo que as pressões da Segunda. Existem batalhas no seio da conferência oficial entre Europa e Estados Unidos, Sul e Norte, nações munidas e nações desmunidas. A segunda mundialização  deve manter uma aliança complexa entre as soberanias nacionais e a nova soberania internacional da Terra Pátria. Parasitada pelas nostalgias do marxismo, ele ameaça o desmembramento. Ela comporta ainda muitas simplificações, certamente, e que simplificação devastadora no cálculo e a redução à economia no outro campo!
As frentes são entrecruzadas e se sobrepõe umas às outras. São essas complexidades que precisam ser pensadas, afrontar e não iludir, a fim de libertar uma estrada (caminho).
Eis aí. Não é a luta final. É a luta inicial do século futuro que desenha seu rosto: à escala humana, à escala planetária.

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