Wilson Horvath
Eu acordei devido ao frio intenso
daquela tarde ensolarada de verão; meus pés estavam gelados, minhas mãos roxas;
todo o meu corpo tremia. Eu sentia a friagem perfurar os meus ossos como se
fosse uma broca muito fina e lenta. Abracei-me e comecei a caminhar sem direção
a fim de esquentar-me. Então, dei conta que estava em um bosque; o lugar era
diferente, mas não me era estranho.
E recordei do que havia ocorrido
antes... Eu suicidei com um tiro, na véspera de Natal. Passei a língua no céu
da boca e percebi o furo causado pela bala. Do ferimento minava sangue
constantemente.
Eu fui tomado por um grande desespero e
comecei a proferi tapas e socos contra a minha cabeça... O mundo começou a
rodar, minha vista escureceu e fui arremessado no chão. E permaneci lá por
algum tempo, chorando feito um louco.
─ O que eu fiz? Por quê? Por que
escolhi morrer dessa maneira? Deus!? Ó Deus! Ajude-me!
Neste momento, sinto meu ombro sendo
tocado e ouço uma voz chamando-me:
─ Michael...
Eu levanto os olhos e vejo o vulto de
mulher, em minha frente. Ela falou algumas palavras, mas, não consegui
entender. Eu só sentia frio congelar o meu corpo, somado ao gosto terrível de
sangue, que parte escorria pela minha boca e o restante que permanecia me
provocava ânsia de vomito.
Ela parou de falar, estendeu suas mãos...
puxou-me contra o seu corpo, envolveu-me fortemente em seus braços e beijou
minha boca. Enquanto beijava, ela sugou o sangue e passando a língua no
ferimento, o fez cicatrizar. Depois, ela soprou dentro de minhas narinas. À
medida que seu hálito entrava, meu corpo foi recuperando o calor. E quando
parou; eu sentia o meu coração bater disparado.
─ Adina...
─ Oi!?
─ Meu nome é Adina...
─ Encantado... Michael. Michael
Quilibet.
─ Eu sei. Por toda a eternidade, te
espero.
Eu sorri e fiquei olhando para aquela
mulher, que com certeza era a mais linda, que já tinha visto. Ela estava nua,
sua pele era negra e suave; cabelos longos e enrolados; olhos grandes e
irradiantes; nariz pequeno e delicado; boca carnuda e lábios bem vermelhos;
seios de pequenos a médios; quadril largo; pernas fortes e longas...
─ Quem é você? Devido a sua beleza,
pressuponho que seja um anjo! Estou certo?
─ Um anjo? Talvez! Em verdade, eu sou a
melhor forma que Deus encontrou para te dar as boas vindas.
─ Nossa! Eu estou no Céu?
Adina passa ao meu lado, dá um pequeno
sorriso, inclinando a cabeça, aponta para frente e diz:
─ Sim e não! O Céu não é um lugar,
embora não haja nenhum lugar que não o seja. Mas, eu não conseguirei te
explicar, ou melhor, você não entenderá. Por isso, eu devo levá-lo até Deus. E
o Céu para ser pleno precisa de você...
Sorri e abanei a cabeça,
desconcordando.
─ De mim? Será que você não se enganou?
Adina deu alguns passos a minha frente,
deixando um perfume irresistível no ar. Eu fiquei parado, com o cheiro exalado
de seu corpo impregnado em minhas narinas; observando a perfeição de suas
curvas e encantado por seu rebolado.
Eu corri em sua direção, puxei o seu
braço, segurei-a pela cintura e a beijei loucamente. Sugava o gosto de seu
corpo e aspirava incessantemente ao seu cheiro; rasguei minhas roupas e as
joguei no chão, essas incendiaram e viraram cinzas. Fizemos sexo como dois
animais rolando na grama, gemendo, arranhando... Tive um orgasmo intenso,
pleno, todo o meu ser participou desse momento.
Adina ofereceu-me um cigarro, o acendi,
dei uma bela tragada e soltei a fumaça lentamente, divagando sobre o que tinha
acontecido. Adina sentou ao meu lado, eu a abracei e a beijei por algum tempo.
Depois, ela levantou e chamou-me:
─ Vamos? Deus está ansioso para te ver.
A fala de Adina deixou-me consternado.
Foi como se ela jogasse um balde de água fria, depois daquele momento mágico.
─ Eu não quero vê-Lo. Eu O odeio.
Preferia que Ele não existisse, mas como existe nunca desejo encontrá-Lo.
─ Bobinho! Você odeia Deus ou a imagem
que te passaram? E se Deus for totalmente diferente dessa imagem ou da que você
construiu a partir das narrativas que ouviu? E se Deus for bom? Muito bom...
─ Bom? Bom, Ele não é! Ele me
abandonou... desamparou a humanidade inteira. Deus só quer o nosso sacrifício.
Se Ele é bom, então explique o porquê Ele teve a pachorra de pedir a Abrão o
sacrifício de seu filho único, Isaque... E por que há tantas...?
─ Descanse Michael. Você deve e precisa
encontrar com Deus. Mas... podemos deixar para depois. Afinal, nós temos a
eternidade toda a nosso favor. E Deus, embora, querendo o encontro, tem
paciência de sobra para esperar a sua decisão.
Adina mostrou-me uma rede armada em um
Abacateiro e em um Ipê-amarelo, repleto de flores. Não demorei muito para pegar
no sono e sonhar com aquela magnifica mulher. Porém, acordei assustado e suando
frio. Tive pesadelos com os últimos anos de vida até o meu suicídio.
Eu não vivia de verdade, mas rastejava
no tempo. Minha vida foi uma busca incessante pela felicidade, mas morri sem
saber o que ela é, ao contrário, só tive dor, sofrimento e decepção. A
felicidade, para mim, estava projetada no futuro ou em algo. Assim, sempre
trabalhei duro para consegui-la, mas quando atingia o meu objetivo, esse não me
satisfazia, então, projetava a felicidade novamente.
Primeiro, acreditei que seria feliz ao
graduar-me; depois a pós... Cobicei um trabalho em uma multinacional; a
diretoria; a gerência; meu próprio negócio...
A felicidade era apresentada a mim nas
propagandas da TV. Ela tinha um preço e poderia ser comprada. Assim, por
exemplo, todo ano, trocava de carro. Então, percebi que o comprava para
deixa-lo parado no estacionamento, pois não tinha tempo para dele usufruir. E
nos poucos momentos que o usava, geralmente, no caminho de ida ou de volta do
trabalho, estava preso em um transito infernal.
Eu fiquei anos juntando dinheiro e
fazendo planos para comprar uma casa beira-mar. Depois de comprada, lá ia, uma
ou duas vezes por ano. E no último ano, não fui nem uma vez, por falta de
vontade e, principalmente, por não ter companhia. E por esse mesmo motivo, não
viajei mais, com exceção de viagens a trabalho.
Não tinha amigos, apenas me relacionava
com pessoas, que eu acreditava que poderiam trazer-me algum benefício e essas,
imagino, estabeleciam a mesma relação comigo. Não sabia o telefone de quase
ninguém de minha família e com a maioria deles, não conversava há mais de dez
anos.
Eu casei duas vezes. A primeira foi por
dinheiro, casei com uma mulher, que acreditei que me daria bens materiais e
oportunidades de crescimento profissional. Ao casar, joguei de escanteio a
oportunidade ou a possibilidade de viver um grande amor com a mulher, que era
apaixonado desde criança, em troca de algumas moedas.
A segunda vez, eu fiz o movimento
inverso, casei com a mulher que acreditei poder comprar. Uma mulher, assim como
eu, gananciosa, sem caráter nem escrúpulos, mas bonita, elegante, inteligente e
bem mais nova.
O meu erro foi achar que poderia
comprar o amor de alguém, pura ilusão! Nós podemos comprar a presença de
alguém, mas não sua companhia. Ela pode estar na mesma cama, mas essa se torna
sinônimo do inferno, e não apenas para quem se vende, mas para ambos. Eu podia
ver em seus olhos o desprezo e ódio que ela nutria por mim, ao transarmos. Ela
sempre me tratava de forma ríspida, com exceção, é claro, de quando queria
algo, mas voltava ao seu normal, após alcançar o que desejara ou ao perceber
que não conseguiria seu objeto de desejo e até mesmo quando estava demorando
muito.
E não há limites para o valor de troca,
ninguém se dá por satisfeito, sempre quer mais, assim como um cardume de
piranhas atrás de sangue. Ela, ao menos, foi útil para eu perceber o porquê
minha primeira esposa pediu o divorcio.
Minha última esposa, ao menos, me deu
uma filha, uma linda menina. Porém, quase não a via, pois estava sempre ocupado
com os negócios e não havia vantagens econômicas em estar com ela. E também, eu
não sabia estar com alguém gratuitamente.
Meu último ano de vida foi solitário;
não comprei mais nenhum bem material para mim. Dei praticamente tudo o que
tinha para minha esposa. Minha vida se resumiu em trabalhar e trabalhar. E, ao
estar em casa, eu estava exausto, mas não tinha sono. Então, para dormir me
drogava com álcool e/ou tranquilizantes.
Eu, porém, com uma vida infeliz a
encarava como uma boa vida. E acreditava que tinha conseguido aquilo que todas
as pessoas lutam para ter. Se alguém me perguntasse, diria que o meu estilo de
vida era o correto e o único que alguém poderia almejar. E odiava aqueles que
pensavam contrário de mim.
Eu, também, odiava qualquer proposta
política que visasse à melhoria da vida das pessoas, em especial, dos mais
pobres. Era meu inimigo pessoal qualquer político que lutava por melhorias
sociais. Para mim, pobre nasceu para limpar privada, servir cafezinho, levantar
parede... e nada mais.
Esse era eu: um solitário babaca
arrogante dono da verdade. Mas, nunca, tinha pensando em me matar. Algumas
vezes, eu cheguei a cogitar se não era melhor eu estar morto. Agora, tirar a
minha própria vida, nunca, pensei.
Antes de suicidar, comprei presentes
para a minha esposa e minha filha e as levei na casa de minha sogra. Lá, eles
estavam em festa e fazendo os preparativos para o natal. Deixe-as e fui embora.
Meu cunhado pediu para eu ficar e jantar com eles, mas inventei uma desculpa,
falei que tinha muito trabalho para fazer.
Em minha casa, fiquei pensando o como
era triste a noite natalina. E na merda que era a nossa vida, um sistema de
troca, um toma cá dá lá. Levantei, destranquei a gaveta do criado mudo, peguei
minha arma, a coloquei na boca, puxei o gatilho... e fui acordar aqui.
Minha vida fora inútil e sem graça. Não
foi uma vida que valeu a pena ser vivida. Talvez, não tenha vivido de verdade.
Assim, não suicidei, apenas coloquei um ponto final em algo que poderia ser
qualquer coisa, menos a vida.
Eu levanto da rede e vou em direção a
Adina, que estava pondo uma panela em uma pedra que se assemelhava a uma mesa
de jantar.
─ Dormiu bem?
─ Sim, mas acordei com uns pesadelos.
─ Não se preocupe; eles vão
desaparecer...
Adina continuava nua e linda, mas senti
muita vergonha de estar sem minhas roupas.
─ Adina, eu não sei o que aconteceu com
minhas roupas, depois de tira-las, elas viraram cinzas. Será que você não
consegue algumas para mim?
─ Desculpe-me, querido! Mas, aqui, nós
não temos roupas. Tirá-las é um dos primeiros passos para vivermos o Céu. O ser
humano teve a necessidade de usa-las, ao pecar. Como nós não pecamos mais,
logo, não as usamos. Simples, não?
─ Não pecamos!? Mas, nós fizemos...?
─ Amor! E o amor é divino. E tudo o que
é divino não pode ser pecado!
─ Divino?
─ Sim, divino! O desejo sexual ou o
amor Eros é uma das formas mais lindas do amor. Na Terra, ele é o responsável
pela continuidade da vida, mas não só. Por meio dele, o ser humano, em um
movimento transcendente, sai de si e vai ao encontro do outro, que o atrai, em
um movimento imanente. Logo, ele é uma forma de comunhão, de ligação intima
entre dois seres.
─ Então, quer dizer que nós dois
estamos em comunhão?
─ Todo o ser humano está em comunhão
com o outro. O sexo é uma forma de selar a comunhão.
Eu nunca tinha encarado a relação
sexual como um ato de comunhão. O sexo era, para mim, ora uma moeda de troca
ora uma forma de descarregar a tensão do dia-a-dia. Talvez, seja por isso que
eu o encarava como algo sujo e pecaminoso.
Comum união...? Será que eu tenha
perdido a minha virgindade, somente agora, com Adina?
─ Interessante. Mas, ainda gostaria de
estar com roupas.
Adina sorriu e levantou a tapa da
panela. E fui tomado pelo cheiro de escondidinho de carne seca.
─ Você deve estar com fome?
Nós comemos e Adina contou-me sobre sua
vida. Ela era fotografa e trabalhava em uma organização, que procura denunciar
e conscientizar as pessoas sobre os crimes ambientais. E que fora morta por
pistoleiros, ao tentar cobrir um esquema de tráfico e contrabando de animais da
fauna brasileira ameaçados de extinção.
Eu fiquei um pouco envergonhado, pois
nunca tinha feito nada para contribuir com algo, ao contrário... e já tinha
comprado alguns produtos que usavam como matéria prima parte desses animais.
─ Minha mãe fazia escondidinho para
nós.
─ Eu sei, a receita é de sua família.
─ Você aprendeu com mamãe? Eu estou com
tantas saudades dela. Será que depois, eu posso vê-la?
─ É claro que pode! Mas, não aprendi a
receita com sua mãe, mas com sua filha.
─ Com minha filha!?
─ Sim... Sua filha, além de boa
cozinheira, é muito bonita.
─ Depois, você me ensina como eu posso
ver a vida na Terra.
─ Eu não a encontrei na Terra, mas aqui
na eternidade.
─ O que você disse? Minha filha morreu?
O que aconteceu com ela?
─ Calma, Michael.
─ Calma!
─ Ela saiu do tempo bem depois de você.
Nós não estamos mais no tempo e espaço. Nós estamos na eternidade. Logo, estamos
fora do tempo. Assim, não há começo, meio e fim...
─ Eu não quero saber de eternidade.
Cadê minha filha? Eu quero minha filha...
─ Pai!
Eu sinto as batidas do coração; meu
corpo estremece. Olho para trás e vejo minha filha.
Ela estava tão linda... Tinha crescido,
mas continuava igualzinha quando criança. Era como se o tempo não tivesse
passado, ela apenas aumentou de tamanho, mas mantinha o mesmo rostinho de
anjinho...
─ Oi papai.
Eu tentei falar, mas minha voz não
saiu. Eu comecei a chorar e fui acompanhado por minha filha. Abraçamo-nos e
juntos choramos.
─ Filha... Como você está linda!
─ Pai! Meu papai!
─ Ai! Filha!
─ Eu senti tantas saudades. Por quê?
Pai! Por que o senhor me abandonou?
─ Eu não sei, filha.
─ Eu queria tanto que o senhor
estivesse comigo... não tinha ninguém para me proteger... Eu nunca festejei o
dia dos pais. Ao formar-me, onde estava o meu pai?... Eu não dancei, pai!
Fiquei a valsa toda chorando... O senhor nunca pegou meus filhos. Pai... pai!
Por quê? Por que o senhor foi se matar? O senhor não pensou em mim...?
Ela desferiu alguns socos contra o meu
peito. E enveredou a chorar e soluçar.
Eu sempre ouvi dizer que o inferno era
um lugar terrível. Com labaredas de fogo e o diabo nos espetando com o seu
garfo. Mas, nada, exatamente nada se compara a dor que senti, naquele momento.
O inferno é pior do que dizem... foi como se meu corpo incendiasse e fosse
apunhalado por golpes incessantes. A única diferença do que dizem é que, ao
invés de ser torturado por um ser horrível; eu estava abraçado com uma linda
anjinha.
Eu não sei por quanto tempo ficamos ali
parados, abraçados e chorando. Só sei que fui despertado ou retirado do inferno
por um doce beijo de minha filha, que depois me deu mais alguns.
─ Que bom te ver, papai.
─ Eu, eu...
─ Desculpa-me pelo que falei. Acho que
estava engasgado e foi preciso por para fora.
─ Filha, filha linda. Eu que devo pedir
desculpas.
─ Eu já te perdoei. Papai!
─ Obrigado.
Ela soltou de meus braços e
cumprimentou Adina com um beijo.
─ Agora, eu estou pronta para viver o
Céu. Papai, vamos!? Para o Céu ser pleno precisa que o senhor esteja vivendo-o.
Eu soltei um riso, minha filha falou a
mesma coisa que Adina. Eu? Uma criatura tão desprezível... O que poderia
contribuir na plenitude do Céu? Mas, como negar um pedido de minha filha?
─ Vamos, filha!
Minha filha segurou em minha mão
direita e Adina a esquerda. Minha filha olhou para Adina e depois para mim e
disse:
─ Papai. O senhor quer encontrar Deus?
─ Sim. É claro.
Então, pessoas começaram a surgir perto
de nós, infinitamente. Vi primeiramente os que eu conhecia, desde a infância
até os meus últimos dias. E todos passavam e nos cumprimentavam. Eles olhavam
diretamente em meus olhos. De alguns, procurei desviar o olhar, porém não era
possível, por mais que esquivasse, não conseguia deixar de olhar diretamente em
seus olhos e também não era possível piscar ou fechar os olhos.
Minha filha puxou a minha mão e disse:
─ Lá está Deus. Nós precisamos ir
agora. O encontro com Ele é algo pessoal.
─ Filha...
Adina, soltando a minha mão, disse:
─ Não se preocupe! Deus é bom... Muito
bom!
Ambas saíram e foram em direção a Deus,
Ele as beijou e veio em minha direção. Deus me era extremamente familiar. Ele
lembrava, ao mesmo tempo, meu avô materno e meu pai. Ele era alto, com traços
fortes; pele bronzeada; rosto largo, maxilar quadrado; olhos grandes e escuros;
boca grande; barba rala por fazer, porém arrumada; os cabelos nem curtos nem
longos e esbranquiçados...
─ Michael... Michael Quilibet! Vem cá,
meu filho, me dê um abraço.
O encontro com Deus era algo tenebroso
para mim. Eu esperava encontra-Lo, em uma espécie de tribunal inquisitório. Ele
estaria com cara de mau e com um livro, em mãos, no qual estariam anotadas
todas as minhas falhas e minhas poucas virtudes, caso houvesse alguma. O diabo
apresentaria as acusações e a Virgem Maria seria minha advogada. Então, Deus
faria uma análise entre as teses de acusação e de defesa, e decidiria a partir
dos autos do processo se eu ganharia a salvação ou a punição eterna.
Ele, porém, estava parado, em minha
frente, sorrindo, de braços abertos, pedindo um abraço. Eu quis ir ao seu
encontro, mas minhas pernas não obedeceram ao meu comando e permaneci imóvel.
Então, Ele veio ao meu encontro, me abraçou, beijou-me e disse:
─ Meu filho! Que bom tê-lo em meus
braços.
Eu, nos braços de Deus, me senti uma
criança. Pude experimentar o seu aconchego, calor, carinho.
─ Deus...
─ Por favor, chame-me de Pai e se já
conseguir, pode dizer: Papaizinho Queridinho.
─ Papaizinho...
─ Olá Michael, meu filhinho.
─ Deus...?
─ Pá...
─ Papaizinho, eu tenho um monte de
perguntas para fazer.
─ Que Bom! Pois, tenho um monte de
respostas para te dar. O que você quer perguntar?
─ Eu vou para o inferno?
Deus dá uma bela risada e abraça-me
mais forte ainda.
─ Menino! Vocês ainda acreditam na
churrasqueirinha eterna? Um pai, que ama o seu filho, ficaria feliz em vê-lo
sofrer? Ou faria de tudo para evitar o seu sofrimento. E, até mesmo, se fosse
possível, sofreria no lugar de seu filho?
─ Eu faria de tudo para ver a minha
filha feliz. A sua felicidade é com certeza mais importante que a minha. Eu fiz
muitas coisas para deixa-la triste. Mas, juro que não foi a minha intenção. Se pudesse
faria tudo diferente.
─ E por que o meu amor seria menor que
o seu? Que espécie de pai sou Eu? Por que Eu condenaria o ser humano que criei?
─ Mas, o Senhor, além de nos amar, não
é justo? E o Senhor não nos deu todas as oportunidades de conversão, logo, se
alguém vai para o inferno é porque ela não se arrependeu, enquanto foi tempo?
─ Meu filhinho! Você não está limitando
o meu amor? A lógica que você está seguindo é a seguinte: Eu sou bom,
infinitamente amoroso, enquanto vocês estão vivos, na Terra. E a partir do
momento que morrem, Eu deixo de ser bom. Mas, como posso obedecer a essa lógica
se Eu estou para além do tempo? Eu não sou eterno? Logo, o meu amor também não
é eterno? E Eu sou o mesmo, e sempre. Então, não há mudanças nem em meu Ser e,
muito menos, em meu amor. Assim, se sou bom uma vez é porque o sou para todo o
sempre. Por que, Eu permitiria que vocês ao cometerem erros, no tempo, que
podem ser grandes e enormes, mas são limitados pelo tempo e espaço; sofressem
uma condenação fora do tempo e do espaço, para todo o sempre e ilimitada? A
minha condenação não seria infinitamente maior que os seus erros? E, nesse
caso, não seria Eu o pior de todos os carrascos?
─ Pai, não fui eu quem criou essa
explicação, mas sim, as religiões. Eu cresci ouvindo essa versão.
Deus sorri, passa a mão em sua cabeça,
me solta de seus braços e começa a caminhar pelo Jardim.
─ Vamos andar um pouco a fim de
ventilar as ideias.
─ Claro!
─ Isso que você fala é verdade. Eu sou
o maior caluniado da história da humanidade. Parece que há quase um consenso
entre os religiosos desejarem que Eu seja mal, em nome de uma possível justiça,
com leis e castigos não estabelecidos por mim, mas criados eles próprios.
─ Deus-Pai, eu não entendo muito sobre
religião. Mas será que eles não passaram essa ideia a fim de que a humanidade
não pecasse. Assim, as pessoas ficariam com medo do inferno e seguiria os seus
mandamentos?
─ Mandamentos de quem? Meus ou deles?
Meu único mandamento é o amor. E ademais o medo não impede que uma pessoa faça
maldades. Ao contrário, em meu nome, o ser humano fez todos os tipos de
barbárie. Pessoas crentes e tementes, roubaram, extorquiram, assassinaram,
guerrilharam, etc.
─ Talvez, seja por isso que há tantas
pessoas que se recusam a acreditar no Senhor.
─ Pode ser! Mas também não foram
somente os crentes que me caluniaram; os ateus também. Eu já fui chamado de
tudo, desde o grande superego à ideia ideológica última, e essa, além de tudo,
tinha que estar a serviço da manutenção do sistema econômico vigente! Eu falei
para o Sartre, já que ele não acreditava nem em mim nem no inferno; por que ele
também não escreveu uma peça sobre o Céu? Era só ele pegar a peça Entre Quatro Paredes, colocar os
personagens no Céu, fazer as devidas adaptações. E dizer: “O Céu são os
outros”.
─ Não entendi, infelizmente, desconheço
essa peça. Eu nunca ia ao teatro.
─ É uma excelente peça. Sartre foi um
dos grandes gênios da humanidade. Não se preocupe, ela está em cartaz. Para vê-la,
basta querer.
─ Deus...
─ Pai!
─ Meu pai! Eu não sei se entendi, mas
se compreendi, não concordo. O Senhor está querendo dizer que eu poderia ter
feito qualquer coisa, por pior que seja. E ainda continuaria me amando?
Deus parou e sentou em uma pedra e
apontou para outra, indicando para eu sentar.
─ Voltemos, então, ao mesmo assunto.
Teria alguma coisa que a sua filha poderia ter feito, que diminuiria o seu amor
para com ela?
─ Eu acho que não. Embora, eu não seja
um exemplo de bom pai.
─ Vamos imaginar algo que não
aconteceu. Supondo que você não tivesse sido tão fraco e tenha acompanhado o crescimento
de sua filha. E em sua adolescência, ela tenha se envolvido com as drogas e se
tornado viciada, ficando à mercê de traficantes. O que você faria? Você a
abandonaria? Ou procuraria tirá-la dessa vida?
─ Minha filha se envolveu com drogas?
─ Não, graças a sua ex-esposa, Rute,
que agiu enquanto foi tempo. Mas, quero saber de você. Você ficaria contente
com aquela situação? E o que faria?
─ É claro que eu não ficaria contente e
faria de tudo para tirá-la de lá. E procuraria clinicas para o tratamento e até
enfrentaria os traficantes para tirá-la de seu domínio.
─ E por que comigo seria diferente?
─ Mas, eu poderia matar ou encomendar a
morte dos traficantes. E o Senhor não faria isso, não é?
─ É claro que não! Os pais dos
traficantes, que também os amam, fariam isso?
─ Suponho que não!
─ Então...!?
─ Então, ninguém precisava ser bom. A
pessoa pode fazer todos os tipos de maldade, pois no final, ela receberá o
mesmo que uma pessoa que sempre se esforçou para ser bom.
─ É isso é o meu conceito de justiça,
dar por igual nem mais nem menos a cada um de meus filhos e filhas.
─ A sua justiça para mim é uma grande
injustiça. Se eu soubesse disso, teria sido pior do que fui. E acredito que não
só eu, mas toda a humanidade.
─ E o que de pior você teria feito?
─ Não sei. Teria matado, roubado...
─ Bom, você, mesmo, acreditando no
inferno, embora, não dando importância a ele, matou a pessoa mais importante do
mundo, você próprio! Agora, não sei o que você entende por roubo; se roubar
significa tirar algo de outrem; você explorou os seus funcionários, tirou
deles, além de dinheiro, a força de trabalho, saúde e vitalidade. Você casou
com Noemi por causa de dinheiro e procurou tirar dela tudo o que ela podia te
dar. Você não foi igual àqueles, que você julga, serem assassinos e ladrões?
─ Uh! Pode até ser, mas não fiz nada
contra a lei, ao contrário.
─ Esse é um ponto interessante de seus
argumentos. Você e todas as outras pessoas pecaram, dentro de um sistema de
pensamento que os condicionavam ao erro, fazendo-os acreditar que o erro era
ora sinônimo de felicidade ora traria a felicidade. O erro poderia ter amparo
legal, como foi o seu caso ou estar presente na cultura de um grupo. Assim,
como disse um grande filósofo, Pascal: “Todos os homens buscam a felicidade. E
não há exceção. Independentemente dos diversos meios que empregam, o fim é o
mesmo. O que leva um homem a lançar-se à guerra e outros a evitá-la é o mesmo
desejo, embora revestido de visões diferentes. O desejo só dá o último passo
com este fim. É isto que motiva as ações de todos os homens, mesmo dos que
tiram a própria vida”.
─ Eu fiz tantas coisas ruins, chegando
ao suicídio, porque acreditei que isso me traria a felicidade?
─ Não foi?
─ Foi! Eu atirei em mim, pois não
aguentava mais minha vida, essa não tinha mais sentido. Para mim, qualquer
coisa era melhor do que aquilo até mesmo o inferno ou o fim de tudo.
─ Entende agora o porquê minha justiça
não é condenativa, mas baseada no perdão. O Céu é diferente do modelo de
organização, que a humanidade estabeleceu na Terra. Sendo diferente, ele começa
com o perdão. Os gregos, dos séculos VI a V a.C., fizeram algo parecido; eles,
ao estabelecer a democracia, perdoaram as dividas e os erros, que as pessoas
cometeram, no período anterior, marcado pela tirania. As pessoas tendem a se
comportarem segundo o que é estabelecido pelo seu sistema social. Mudando o
sistema, também, muda a ação e o pensamento das pessoas. O Céu é um lugar de
igualdade, onde ninguém tem nem mais nem mesmo que o outro, logo, espera que as
pessoas mudem também.
─ E se alguém não quiser mudar?
─ Ela tem liberdade de escolha. Eu não
posso obrigá-la a tomar determinada decisão. Ela é livre, e é sempre. Se ela
optar por não viver o Céu, ela viverá o inferno.
Eu coloco as mãos na cabeça, olho para
Deus e digo:
─ Voltamos novamente para a estaca
zero.
Deus sorri, puxa-me para perto de si,
passa a mão na minha cabeça e diz:
─ Menino, menino! O inferno existe como
possibilidade escatológica, mas está vazio. Tai um dogma que a humanidade
deveria proclamar; ela que adora a criar dogmas.
─ Meu Deus-Pai! Eu estou começando a
achar que mesmo aqui; para crer, não conseguirei compreender.
Deus dá uma bela e gostosa risada.
─ Vamos pensar um pouco: O Céu para ser
o Céu tem que ser pleno, pois se faltar uma só coisa por menor que ela seja já
não é mais Céu, pois ele deixou de ser pleno. Concorda?
─ Uh!
─ Uh, o que?
─ Concordo.
─ Agora, diga-me com quem você gostaria
de estar no Céu?
─ Com minha filha e com minha mãe,
especialmente.
─ E se uma delas não tiver com você no
Céu, o Céu seria Céu para você, ou seja, ele seria pleno?
─ Não! Logo, você também não estaria no
Céu, pois você não estaria vivendo a plenitude.
─ Isso é verdade!
─ E Eu também estaria muito triste com
a condenação de alguém, pois também a amo.
─ Claro! O Senhor é nosso Papaizinho
Queridinho.
─ Você está começando a entender. E Eu,
além do mais, seria um incompetente, pois não fui capaz de salvar um de meus
filhos e filhas. E se teve um só, que não pude salvar, logo, Eu não sou
perfeito e se não são perfeito Eu não sou Deus.
─ Mas, Deus é perfeito.
─ Então, Eu farei de tudo para tirar a
pessoa do inferno e trazê-la para o Céu. Esse que somente será pleno, após a
volta de todos os meus filhinhos e filhinhas.
─ Entendi o porquê que Adina e minha
filha disseram que o Céu somente seria pleno comigo.
─ E ambas foram a melhor forma que Eu
encontrei para tirá-lo do inferno e trazê-lo a mim.
─ Eu estava no inferno?
─ No Céu que não era.
─ O que é o Céu? Eu já estou nele?
─ Quase! O Céu não é um lugar propriamente
dito, mas não há nenhum local que não o seja...
─ Adina me falou isso.
─ O Céu é um estado de espirito, em que
todas as pessoas convivem amorosamente umas com as outras, formando assim, um
só corpo e um só espírito. O Corpo Místico. No Céu, você está, ao mesmo tempo,
com todas as pessoas e Comigo.
─ Até com os meus inimigos?
─ É claro! Mas com uma diferença
básica, eles não serão mais seus inimigos, e sim, seus amigos.
─ Ah! Mas, isso para mim nunca foi o
problema. Eu sempre convivi com quem odiava, e fazia com que eles acreditassem
que gostava deles.
─ Só que você conviverá com eles
eternamente e sempre estarão olhando um nos olhos do outro. Por isso, não tem
com esconder os verdadeiros sentimentos. Você deve torná-los seus amigos e
vice-versa, caso não, o Céu não será pleno para ambos, pois ter que conviver
com quem não gostamos é um inferno. Para viver o Céu, é preciso se arrepender
sincera e realmente dos nossos erros; desculpar todas as pessoas, das quais
guardamos magoas; e pedir desculpas a todos àqueles com os quais falhamos.
─ Isso é difícil.
─ Sim muito. Esse processo é o que Eu
chamo de purgatório, ou seja, é um estágio, em que purgamos. Simbolicamente,
podemos dizer que é como se nosso corpo e alma queimassem, em um exame de
consciência profundo a fim de conquistarmos o Paraíso.
─ E se eu não conseguir?
─ Eu o ajudarei... Adina também pensou
que nunca conseguiria perdoar e amar pessoas iguais a você, que para ela, e com
muita razão, foram os responsáveis tanto pela extinção de várias espécies de
animais como pela sua morte. Sua filha tinha uma enorme magoa de você por tê-la
abandonada e acreditava que nunca conseguiria perdoá-lo. E ambas não
conseguiram? Elas purgaram em sua presença; doravante, elas o amam.
Deus se levantou, acenou para que eu
levantasse, me deu um grande abraço e um beijo.
─ Vá agora, meu filhinho. Vá conviver
com os demais. Faça um belo e sincero movimento de conversão. Não se preocupe.
Encontramo-nos, depois. Se precisar é só me chamar. Nós ainda temos algumas
questões pendentes para tratarmos e Eu tenho uma missão que só você pode me
ajudar.
─ Eu?
─ Sim, só você!
Deus saiu entre a multidão. Ele
conversa, abraçava e beijava a todos.
E eu dei de cara com minha primeira
esposa. Ela estava linda; cabelo muito preto e longo; pele branca; olhos bem
verdes; seios fartos; pernas grossas...
─ Oi Noemi.
─ Olá Michael.
─ Eu tenho que te pedir desculpas.
─ Do que?
─ De ter te roubado e enganado?
─ Ai Michael! É tão difícil perdoar, os
ressentimentos ficam roendo a nossa alma e destruindo o nosso corpo. Às vezes,
nós esquecemos até dos fatos que proporcionaram as magoas e ficamos só com a
raiva e a alimentamos cada vez mais. Eu te perdoo, Michael. E te peço o mesmo.
─ Não há o que te perdoar. Você nunca
fez nada de mal para mim.
─ Eu fui corresponsável pelo seu
egoísmo. Fui eu quem instigou naquele menino o gosto desenfreado pelo dinheiro
e por tudo o que ele pode comprar. Talvez, se eu fosse menos materialista, você
não se tornaria o que foi.
─ Eu nunca pensei nisso. Talvez, não
seja você a responsável; o egoísmo já estava em mim. Ele foi apenas despertado
a partir do convívio com você e seu padrão de vida.
─ Pode ser! Mas, nossa identidade se
define por nossas atitudes e ações... Você me perdoa?
─ Eu já disse, não há o que perdoar.
Noemi me deu um delicioso abraço, ela
estava com o corpo tão quentinho e macio. Ela virou e beijou a minha boca.
Beijamos, por um longo tempo.
─ Vamos lembrar os velhos tempos?
─ Será ótimo!
Nós fizemos um amor apaixonado. Um amor
que nunca havíamos feito, cheio de trocas de afetos. E, o que é principal, amor
por amor, sem esperar nada em troca.
Nós conversamos por um longo período
ora abraçados ora um fazendo carinho no outro; demos várias rizadas de nossas
gafes. Despedimo-nos, como dois namorados recém-apaixonados, com vários abraços
e beijos.
─ Nós estamos unidos para todo o
sempre.
─ Em comunhão eterna.
─ Agora, nós devemos continuar o nosso
processo de purgação.
─ Que purgação mais gostosa é essa!
─ Nos encontramos.
─ Sempre!
Eu continuei a caminhar pelo Jardim e
encontrei meu antigo funcionário Abel, com quem trabalhei nos meus últimos dez
de vida.
─ Dr. Quilibet!
─ Olá Abel, que bom encontra-lo.
─ O senhor não vai me pedir um café? Eu
até sei que o senhor gosta de café descafeínado, espumoso e sem açúcar.
─ Em verdade, eu sempre odiei esse
café. Só o tomava por pura frescura e para dar um ar de superioridade. Café sem
cafeína... tinha gosto de nada.
─ Dr. Quilibet, eu tenho que pedir
desculpas para o senhor, pois, na maioria das vezes, quando não tinha ninguém
vendo, eu cuspia na garrafa de café.
─ Será que era por isso que ele tinha
aquele gosto horrível?
Abel olhou para mim assustado. Eu,
então, comecei a sorrir e ele me acompanhou na gargalhada.
─ Abel. Eu que devo te pedir desculpas,
por toda a humilhação, o tratava pior do que a um escravo. Por favor,
desculpe-me?
─ O senhor me tratava pior do que um
cachorro. Ensaiei várias vezes te dar umas boas porradas... Nunca, encontrei
uma pessoa tão arrogante e soberba como o senhor.
─ Eu sei disso! Abel, por favor,
perdoe-me?
─ Dr. Quilibet...
─ Abel, não me chame mais de doutor nem
pelo meu sobrenome, chame-me pelo meu nome, Michael.
─ Certo! Michael. O senhor sabe o
porquê não pedi demissão?
─ Você precisava do emprego e do
salário?
─ Não! Eu poderia ter procurado outro
emprego e o salário não era tão bom assim. Não pedi demissão, pois o invejava;
o senhor era para mim, o modelo de ser humano. O que me causava mais ódio do
senhor era que eu queria fazer o mesmo, mas não podia fazê-lo.
─ Que lixo de modelo de ser humano que
nós seguimos!
─ Sabe o que é mais me dói? Dr. Qui...
Michael, eu relacionava com minha esposa da mesma forma que o senhor me
tratava. Descarregava nela toda a humilhação que sofria na empresa; e procurava
fazer dela um ser inferior a mim. E isso me dava prazer e fazia com que me
sentisse superior.
─ Minha prepotência também era para
esconder minha fraqueza. Eu não sei explicar bem, mas tinha medo e inveja dos
funcionários. Ao vê-los reunidos, felizes, contando sobre as festas do fim de
semana, eu reportava à minha infância, aos tempos do colégio. Eu era um menino
franzino, de poucos amigos, tinha medo dos outros meninos brigarem comigo e
sentia ciúmes deles por serem populares, na escola, tanto entre os rapazes e,
principalmente, com as meninas. O demônio que me tornei nada mais era do que
uma tentativa de fazer com que a imagem daquele menino fraco desaparece...
Eu comecei a chorar após contar isso
para Abel. Nunca, havia dito isso para ninguém; esse era o meu segredo mais
profundo, por isso procurava esconde-lo de todos, inclusive de mim mesmo.
Abel abraçou-me e comigo chorou.
─ Michael. Será que nós passamos nossa
vida inteira lutando para superar nossos medos e traumas de infância? E isso
fez com que eliminássemos as virtudes daquela criança boa e alegre que éramos e
nos tornássmos um poço de frustrações e maldades, prontos para atacar todos
aqueles que estão ao nosso redor?
─ É isso Abel! Para vivermos o Céu...
nós devemos deixar as mascaras que criamos e voltar a sermos crianças!
─ Então, o purgatório é o momento em
que preparamos para voltar para o pregraud.
─ Ser criança... correr, pular, brincar
com todas as pessoas, sem distinção de classe social, cor, sexo... Vamos correr
Abel?! Vem vamos voltar a sermos crianças...
Abel e eu começamos a correr pelo
Jardim, pulando as pedras e as flores; outras pessoas juntaram a nós, meus
amigos de infância, meus colegas de escola, meus primos... Nós brincamos de
pega-pega, mãe da rua, salva latinha, queimada. Nós nos desculpamos uns com os
outros; desfacemos antigos ressentimentos e divertimos muito; eu não me
lembrava do tanto que é bom viver descompromissado, gratuitamente, sem as
chatices que criamos para vida adulta. Na brincadeira outras pessoas, que eu
conhecia, entraram.
Eu parei de brincar, ao ver minha
última esposa, Rute. Ela sorriu e abanou para mim. Rute estava linda, parecia
um anjo de cabelos loiros... O que mais me chamou a atenção foram seus olhos.
Esses, agora, estavam luminosos, vibrantes e revelavam alegria e amor.
─ Olá coelhinho saltitante.
─ Olá princesa.
─ Você corre bem, poderia ter disputado
a São Silvestre.
─ Eu estava correndo para te encontrar.
─ Hum! E eu estava aqui, toda a
eternidade, te observando e te esperando.
─ Acho que nós temos que selar nossa
união, né?
─ Em comunhão eterna?
─ Para todo o sempre!
─ Mas, antes, nós não devemos pedir
desculpas um para o outro?
─ Eu li no regulamento que podemos
deixar para depois.
─ Michael! Aqui tem regulamento...?
Nós nos taquemos nos beijos e amassos...
E puxa daqui, rola ali, morde acolá... sobe, desce, muda de posição, volta para
a mesma posição, agacha, senta, levanta, deita...
─ Rute! Ainda bem que eu morri, caso
não, já era...
─ Bobo!
─ Nós deveríamos ter vivido assim.
─ Nós viveríamos o Céu, em vida.
─ Pena que o dinheiro esteve sempre em
primeiro lugar.
─ É... por isso é impossível servirmos
a dois senhores. Ou se serve a Deus ou ao dinheiro. E nós optamos pelo segundo.
─ Deus é tão bom!
─ Michael!
─ O que! Menina?
─ Eu esqueci. Deus pediu para te dizer
que Ele precisa de você para uma missão.
─ Eu vou lá. Encontramos-nos depois?
─ Nós nos esquecemos de pedir perdão.
─ Não precisa, pois já nos perdoamos.
─ Que perdão mais sincero!
─ Beijos, te amo, te amo, te amo!
─ Nos vemos...
─ Para todo o sempre.
Deus estava sentado no Jardim,
brincando com as crianças. Ele, a me ver, levantou e veio em minha direção.
Algumas crianças ficaram seu no colo, umas subiram em suas costas, e outras
ficaram abraçadas em suas pernas, enquanto caminhava.
─ Olá meu filho querido!
─ Olá meu Papaizinho Queridinho!
─ Como foi?
─ Muito bom! Pai, por que a vida na
Terra também não é assim?
─ Michael e suas perguntas. Em meus
planos, lá deveria ser feito a minha vontade como no Céu. Assim, vocês deveriam
viver na Terra como aqui. Porém, vocês foram comer o fruto proibido...
─ Mas, aqui nós podemos fazer sexo, não
podemos? Adina disse que sim.
─ Claro que pode! Se não pudesse não
seria o Céu, certo? O nome que dei ao Céu, esse que engloba a Terra, é Jardim
do Éden. Éden quer dizer: prazeres, delícias. Logo, o Céu é onde se vive todos
os prazeres e delícias divinos.
─ Então, o que é o fruto proibido? Qual
é a Árvore do Bem e do Mal?
─ Muito simples! O fruto proibido é a
propriedade privada. O ser humano vivia feliz na Terra. Porém, a partir do
momento em que ele passou a preocupar com a propriedade privada, ele passou a
maquinar, a refletir o como poderia se dar bem à custa do mal dos demais. Você
conheceu o Rousseau, enquanto brincava. Ele matou a charada do fruto proibido,
segundo ele: "O primeiro homem que, depois de cercar um pedaço de terra,
atreveu-se a dizer: 'isto é meu' e encontrou gente simples o suficiente para
acreditar nele. Ele é o real fundador da sociedade civil. Quantos crimes,
guerras, assassinatos, quantas misérias e horrores à raça humana poderiam ter
sido evitados se alguém diante daquela cerca ou fosso, tivesse gritado para
seus companheiros: 'cuidado com este impostor; vocês estarão perdidos se
esquecerem que os frutos da terra pertencem a todos e que a terra não pertence
a ninguém".
─ Mas, Deus. A propriedade não é fruto
do nosso trabalho?
─ Michael, meu filhinho queridinho. É
só pensar na propriedade que vocês esquecem que Eu sou seu pai...
─ Desculpe, Papaizinho Queridinho.
─ Quem teve o trabalho de criar a
Terra?
─ O Senhor.
─ Então, de quem é a Terra?
─ Hum! Pensando assim, ela é do Senhor.
─ Se é minha; quem cercou um pedaço de
terra e disse que era o seu, o que ele fez?
─ Roubou suas terras.
─ Entendeu o que é o fruto proibido?
─ Entendi. Mas e se a pessoa enriqueceu
não cercando um pedaço de terra, mas com seu trabalho?
─ Diga-me um que enriqueceu dessa
forma?
─ Uai! Eu.
─ De que forma você se enriqueceu?
─ Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei
até juntar dinheiro para abrir o meu próprio negócio. Comecei com dois
funcionários, depois fui expandindo, contratando mais funcionários e
enriquecendo.
─ Se você não tivesse contrato os seus
funcionários, você teria enriquecido?
─ Não.
─ Então, você enriqueceu graças ao
trabalho de seus funcionários?
─ Sim, mas eu também trabalhei. E
trabalhava mais que eles todos e ainda tinha que supervisioná-los.
─ Não sei se isso é verdade que você
pode até ter trabalhado mais, o que sei é que você também ganhava mais e bem mais
que todos eles juntos. E sem eles você teria feito o que fez?
─ Não.
─ Então, você enriqueceu graças ao suor
deles?
─ Sim.
─ Você já parou para pensar que você
não roubou minhas terras, mas o suor de seus funcionários?
─ Não sei! Mas, quem comprava as
máquinas para eles trabalharem era eu.
─ O dinheiro vinha de onde?
─ Do lucro de minha fabrica.
─ Quem gerava lucros?
─ O trabalho de meus funcionários.
─ Esse é o fruto proibido que você
comeu.
─ É verdade! Eu pensava que isso era o
certo. E agindo assim, estava no caminho do bem.
─ A árvore do bem, que leva ao mal.
─ O que o Senhor falou lembra o
socialismo.
─ Não tem nada de socialismo. O que
estou dizendo é revelação. Mas, mesmo assim, Eu torci tanto para o socialismo
tivesse dado certo. Eu falei para o Marx. Eles tinham tudo para dar certo, se
eles não se considerassem os donos únicos da verdade. Os socialistas não gostavam
da religião e com razão, pois eles só conheceram uma religião, que era serviçal
dos poderosos e enganadora do povo. Porém, eles, ao tentarem destruir uma
religião para além da vida, criaram uma nova religião terrena, materialista.
Eles fizeram uma leitura dialética do mundo, mas no final, eles caíram na grande
metafísica estática do comunismo que na prática, se tornou a ditadura do
socialismo real, com seus sacerdotes bem definidos, os membros do Partido
Comunista. E novamente, eles comeram o fruto proibido. E o povão mais uma vez,
continuou na miséria.
─ O socialismo nem o capitalismo foram
de seu agrado?
─ Como algo que gerava desigualdade
entre as pessoas poderia ser?
─ E qual o sistema que seria?
─ Um que não houvesse escravos nem
senhores ou empregados nem patrões. O ser humano tem capacidade de sobra para
criar e recriar múltiplos modelos que garantisse a igualdade e a felicidade
entre as pessoas.
─ Eu só não entendi uma coisa. O Senhor
torceu para que o socialismo tivesse dado certo? O Senhor não sabia de antemão
que ele não daria?
─ Eu sei de tudo! Mas, Eu não jogo dados
com a vida do ser humano. O ser humano é livre para decidir e é livre sempre!
─ Como o ser humano pode ser livre se o
Senhor sabe o que ele vai fazer? Não há um destino escrito?
─ Não tem nada escrito. O destino é
escrito a partir das decisões das pessoas. E o ser humano livre tem infinitas
possibilidades de escolha. E Eu as conheço todas e as possíveis interações que
se originaria de cada decisão. Mas não determino a sua escolha, essa está
sempre vinculada ao livre arbítrio.
─ Meu Querido Papaizinho. Por que o
fruto proibido nos cegou tanto? Nós deveríamos ter conhecido a verdade sobre o
Céu e sobre o Senhor. Nós, com certeza, viveríamos mais felizes e melhores.
─ Meu filho. Eu nunca abandonei a
humanidade, ao contrário, Eu sofri com ela e caminhei ao seu lado. Eu estava em
tudo e tudo estava imerso em mim. Eu estava presente em cada pessoa e todo o
ser humano era um Templo Sagrado. Assim, não havia uma pessoa sequer que não
sabia o que era correto para fazer. Um exemplo: quando um pobre batia a sua
porta, você poderia não atendê-lo, e criar um monte de desculpas para ignora-lo
e até mesmo critica-lo. Mas, se você parasse e refletisse, você saberia que
deveria ajuda-lo. E ninguém precisava dizer isso a você. Não é?
─ É... eu sempre sabia. Tanto é verdade
que quando eu achava que isso traria algum beneficio publicitário, fazia
questão de ajudar.
─ Muitas pessoas conseguiram superar as
ilusões dadas pelo fruto proibido e tornaram suas vidas terrenas um espelho do
Céu. Francisco de Assis, Mahatma Gandhi, Santo Dias da Silva, Darcy Ribeiro,
Irmã Dorothy, Chico Xavier...
─ E a repressão sexual? Todas as
pessoas que conheci, na vida na Terra, achavam que sexo era pecado e contra os
seus ensinamentos.
─ A repressão sexual apareceu após o
ser humano comer o fruto proibido, ou seja, após o surgimento da propriedade
privada. O homem possuidor de terras, para garantir que seus bens ficariam com
seus filhos consanguíneos, obrigou a mulher a se tornar somente sua e ter relações
sexuais somente com ele. Assim, mulher se tornou propriedade do marido. E o
homem possuidor de bens também proibiu que seus filhos fossem homossexuais,
como uma medida para garantir a permanência dos bens materiais ao logo de sua
descendência. A repressão sexual poderia desaparecer paulatinamente após o fim
da propriedade privada e sem um partido controlador do Estado. E se as pessoas
fizessem mais amor, talvez, elas não se preocupassem tanto com os bens matérias
e com o poder.
─ E a homossexualidade não é pecado?
─ Por que seria, se ela é uma forma de
amor? E se alguém é homossexual é porque Eu assim o fiz. E o criei dessa forma,
para ele ser feliz.
─ E a família monogâmica é errada?
─ Se duas pessoas se unem por amor e
somente por ele, não há nada de errado nisso, ao contrário, elas estão participando
da divindade, pelo amor. O errado foi impor isso a todas as pessoas, como
modelo único.
─ Eu estou entendendo. Tudo é
permitido, desde que é feito por amor.
─ Isso! Você conhece aquele ditado:
“Diga com quem tu andas; que direis quem tu és”?
─ Conheço.
─ O mesmo vale em relação a mim, ou
seja, “Diga quem é seu Deus; que direis quem tu és”.
─ Se o nosso Deus é um pai de amor, nós
também seremos amor?
─ Esse é o Céu!
─ Entendi...
─ Que Bom que você está entendendo,
pois tenho uma missão para você. E somente, você pode realiza-la.
─ Qual? Em que posso ajudá-Lo?
─ Sua mãe acabou de morrer. Ela terá
muita dificuldade de aceitar-me do jeito que sou. Por isso, quero que você
traga-a para mim.
─ Mas, mamãe faleceu bem antes de mim.
─ Michael. Nós estamos fora do tempo.
Você não encontrou com sua filha e ela não morreu bem depois de você. Então,
aqui não tem mais tempo, não existe o antes nem o depois, mas a eternidade. Ao
invés de tempo, há estágios, esse que varia de pessoa para pessoa. O depois
pode vir antes e antes depois.
─ E por que mamãe não o aceitaria? Ela
era tão religiosa.
─ A fé dela era muito marcada pela
doutrina do inferno e de um Deus punitivo. Você que não era uma pessoa muito
apegada à fé teve dificuldades; imagine sua mãe?
─ O que eu faço?
─ Diga a ela as coisas que Eu te disse.
─ E se eu não souber argumentar como o
Senhor?
─ Não se preocupe. O amor de mãe está
além de qualquer argumento.
─ Onde ela está?
─ Michael, não há lugar aqui. Basta
querer encontrá-la que você estará com ela.
Mamãe estava sentadinha, olhando para
todos os lados a procura de algo ou alguém.
─ Mamãe.
─ Chael! Elzinho! Vem cá meu filho. Eu
estava tão triste no hospital, você não vinha me visitar. A dor que sentia em
meu corpo nada era perto da dor de minha alma por não tê-lo perto de mim. Queria
tanto te dar um beijo de despedida...
Eu abracei mamãe e chorei tanto naquela
hora. Esse foi o meu último estágio do purgatório. Como pude ter sido um homem
tão ruim? Abandonar a própria mãe no leito de morte? Em lágrimas, falei:
─ Mamãe. Nós vamos ficar juntos, agora.
Para todo o sempre.
─ Pare de chorar, menino. Você já é
hominho!
─ É verdade, mamãe. Agora é só alegria!
─ Conte-me. O que aconteceu com você?
Por que você está aqui.
─ Ai que está o problema, mamãe. E só a
senhora para me ajudar. Eu suicidei com o tiro na boca.
─ Meu filho do Céu! Não fala uma coisa
dessas. Isso é pecado gravíssimo. Michael! Você parece que não mudou nada,
continua a ser aquele menino mimado! Você vai perder a sua alma! Michael, tenho
que conversar com Deus.... o tanto que orei por você.
─ Então, mamãe. Eu já conversei com
Ele. Ele me perdoa. Mas para tal todo mundo tem que ser perdoado.
─ Até seu pai?
─ Inclusive.
─ E os bandidos?
─ Também. Se eles não se salvarem, eu
tô na roça.
─ Roça, menino? Você vai pro inferno! Ai
ai! Se você não for para o Céu, como posso ser feliz?
─ Para eu estar no céu, todos têm que
ser perdoados!
─ Vamos lá. Deixa que eu converse com
Deus.
Deus surge em nossa frente, mamãe beijou-me
e fez um sinal para deixa-los a sós...
Eu fiquei pensando como seria a
conversa dos dois. Mamãe usaria os mesmos argumentos que Deus usou para me
salvar. E ambos conversariam sobre a gratuidade, o amor pleno para salvar toda
a humanidade... Eu sinto os meus ombros sendo tocados.
─ Michael vamos?
─ Hoje, você viverá o Céu para todo o
sempre. Você estava perdido e voltou para a minha casa. E todas às vezes que um
filho que estava perdido volta para a casa do Pai, o Pai dá uma festa. A festa
é a forma de meu amor pela humanidade, o Ágape. Amor puro, sem esperar nada em
troca, como as relações que ocorrem em uma festa. Hoje é o dia que nasceu a
salvação para você e para o mundo.
─ Pai. Antes, só uma perguntinha. Na
Bíblia, tem aquela passagem de Abraão e Isaque...
─ Michael, você vai ler Temor e Tremor de Kierkegaard. Você tem
que estudar meu filho; depois nós conversamos. Agora, vamos para a festa. Estou
com fome. Vamos!
O Céu é maravilhoso. Eu encontrei meu
velho parceiro de truco, Samuel. Ele estava enrolando um cigarrão de palha e
tomando uma boa cachacinha. E me disse que nós estávamos escalados para jogar a
próxima partida contra os nossos adversários eternos, no baralho: Peroza e
Bertotto. Augustão e Silvião estavam cuidando da churrasqueira. Valéria
preparava uma batida de vinho. Vanessa cuidava do vinagrete. Edilson fazia a
caipirinha. Renato, com a mão na perna de uma linda mulher, contava piada.
Valdemir, feliz da vida, contava causos. Edivan comanda a precursão do samba.
Cida e Edimilson eram os mestres abre-alas. Flavia a rainha da bateria. Are era
o destaque da escola de samba. Edson e Francisco filosofavam. Eduardo estava
com seu namorado novo... E minha grande paixão de infância estava sentada, em
baixo de uma macieira, olhando e sorrindo para mim; seus olhinhos tinham o
mesmo brilho de quando a beijei pela primeira vez, as meninas de seus olhos emitiam
tantas emoções que pareciam saltar para fora...
α Ω – το 'αλφα και το Ωμέγα
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