"O oposto é conveniente, e das diferenças nasce a mais bela harmonia" (Heráclito).
O início deste novo milênio é marcado pelo afloramento, fortificação e consolidação das diferenças. Assim, nosso planeta está se tornando um aglomerado de vários “mundos” que ora se interagem na Aldeia Global ora se afastam em seus guetos.
Evidente que as diferenças sempre existiram na história da humanidade, porém, elas eram bem demarcadas e separadas pela geografia, religião, etnia, sexo, etc. Estas barreiras bem visíveis caíram por terra, e, ao mesmo tempo, edificaram outra, invisível, por isto mesmo, mais difícil de ser transposta – a barreira do preconceito.
O preconceito está enraizado nas entranhas de nosso ser, sustentado por deuses, demônios, mitos e tabus. Ele é os “pré” (anteriores à) conceitos culturais que nos formaram e pelos quais aprendemos a ver e agir na natureza e com as outras pessoas.
O preconceito visa, sempre, dar uma resposta a uma questão enfrentada pela humanidade. Alguns tem validade universal, como a proibição do incesto; outros possuem alcance particular para um grupo, como a monogamia, que se iniciou com a propriedade privada, garantindo ao homem possuidor de bens a certeza que sua herança seria perpassada a seus descendentes - não queremos com isto, excluir a possibilidade de amor ad aeternum entre duas pessoas, só estamos situando o início deste modelo familiar - (ENGLES).
O preconceito também surge pela diferença de idades, “onde os jovens, mesmo sabendo que envelheceram, consideram os velhos uma espécie senil por natureza e os velhos esquecem que foram jovens” (Morin, 2005, 84). E há os que são formado pela diferença sexual. Cito como exemplo, uma frase, que ouço desde criança: “que é mais fácil desintegrar um átomo a entender a cabeça de uma mulher” (Se ela for verdadeira, obviamente, o mesmo vale para as mulheres em relação aos homens!).
Ultrapassando a conotação negativa desta frase, percebemos a dificuldade existente na relação com o outro-diferente, neste caso específico, a única diferença é o sexo, haja visto que o homem nasce de uma mulher, é alimentado e educado por ela, convive com suas irmãs, esposa, filhas, e no final, não entende o sexo oposto. Isto porque o preconceito limita a nossa capacidade de compreensão.
O outro é espelho para que possamos compreender a nós mesmos. Nós nos vemos no outro, ele é a “chave” para abrirmos os mistérios de nossa alma. O dizer socrático: “conheça a ti mesmo!” se dá na relação maiêutica, ou seja, no dialogo, na confrontação com o outro.
O preconceito não origina, portanto, de nossa incapacidade de aceitação do outro-diferente, mas se origina de nosso medo de nos vermos refletido no outro. Este outro poe “em cheque” nossa autoimagem, formada ao longo da vida. E em um ato narcista – na Mitologia Grega, Narciso não ama a si, mas sim a sua imagem refletida – partimos para destruição deste, antes que ele destrua nossa autoimagem.
Sigmund Freud, o pai da psicanalise, nos ensinou, sabiamente, que nosso “Eu” é formado por uma tríplice estrutura: Id, Superego e Ego. O Id é o conjunto inconsciente de energia biológico-sexual, é amoral; o Superego é responsável pela moral e o sentimento de culpa, ele se forma pela interiorização da autoridade familiar e social; o Ego é parte consciente do Id, sua função é mediar os impulsos do Id com as repressões do Superego.
Se o Superego sufoca qualquer tentativa de afloramento do Id, este “se rebela” e volta em forma de neurose, proporcionando grandes tragedias tanto àquele que foi reprimido como aos que estão a sua volta. E sem o superego, nós não nos diferenciamos em nada dos animais. Vivemos, então, o Paradoxo do Superego.
O Superego coletivo, patriarcal, sustentado pelos alicerces da cultura greco-judaico-cristã, ditou o comportamento do Ocidente nos dois últimos milênios. Ele conseguiu reprimir o Id de tal forma que este foi considerado uma possessão demoníaca, alheia ao ser pessoal.
Nesta luta impetuosa contra o Id, este superego caducou com o passar do tempo, e perdeu muito de suas forças, tornando desacreditado, satirizado. Assim, ele não consegue mais reger a sociedade, como fez em seus tempos áureos, o que não o impede de causar enormes estragos, às vezes, até piores que os de outrora.
Além do desgaste imposto pelo tempo, o superego greco-judaico-cristão enfrentou um “inimigo a sua altura”, capaz de promover um maior e mais completo domínio sobre o individuo: O capital.
Onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Dilacerou impiedosamente os variegados laços feudais que ligavam o ser humano a seus superiores naturais, e não deixou subsistir entre homem e homem outro vínculo que não o interesse nu e cru, o insensível “pagamento em dinheiro”. Afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimento pequeno-burguês. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e no lugar das inúmeras liberdades já reconhecidas e duramente conquistadas colocou unicamente a liberdade de comércio sem escrúpulos. Numa palavra, no lugar da exploração marcada por ilusões políticas e religiosas colocou a exploração aberta, despudorada, direta e árida. (MARX E ENGELS, 2002, 47-8).
O capital (dinheiro) provoca nas pessoas um Fetiche (encantamento), fazendo-as venera-lo e obedece-lo cegamente. De objeto inanimado se torna o “Senhor Absoluto” de tudo o que há na terra e no céu. O seu poder alucinatório vai desde os possuidores de bens aos mais paupérrimos “Os oprimidos, que introjetam a ‘sombra’ dos opressores e seguem suas pautas (...)” (Paulo Freire).
Nesta busca cega pelo Ter Mais, as pessoas esquecem do Ser Mais... nada mais importa, além do Dinheiro. É “permitido” em nome deste “deus”: matar, roubar, mentir, não ter amigos e família.
O capital faz com que todos os preconceitos anteriores trabalhe ao seu favor. Se for interessante, amplifica o preconceito, se não, deixa-o “de molho” até que seja novamente útil.
Porém, esta busca desenfreada e insaciável pelo Ter coloca o Ser Humano em risco de extinção, segundo Leonardo Boff (on-line):
Precisamos de um novo paradigma de civilização porque o atual chegou ao seu fim e exauriu suas possibilidades. Temos que chegar a um consenso sobre novos valores. Em 30 ou 40 anos a Terra poderá existir sem nós. A busca de um novo paradigma civilizatório é condição de nossa sobrevivência como espécie. Assim como está não dá para continuar. Na última página de seu livro ‘A era dos extremos’ diz enfaticamente Eric Hobsbawn: Nosso mundo corre o risco de explosão e de implosão. Tem de mudar!
A espécie humana pode acabar por várias ameaças, as de grande impacto: guerra nuclear ou biológica; reação da natureza ao aquecimento global (dilúvios, falta de alimentos). E as de impacto particular: grande número de suicídio devido à falta de sentido da vida, e pelo mesmo motivo, overdoses causadas por calmantes e drogas ilícitas; assassinatos sem causa consistente (se há causa que justifique a morte do outro!?); Fugit Mundi (solidão) em meio à maquinas...
Isto se dá, pois aqueles que detêm o capital sugam, sucateiam e destroem tudo que está a sua volta, seja o meio ambiente seja o ser humano trabalhador, afim de obter lucro e mais lucro, insaciadamente.
E aos despossuídos dos meios de produção resta duas ilusões. Primeira: que serão, um dia, possuidores e neste dia poderão explorar outros; segunda: que embora estão sendo explorados, eles tem um pouco a mais que outras pessoas, o que lhes dá a sensação de superioridade. Esta dupla ilusão é o que impediu a transformação social até agora. Porém, como diz Hobsbawn (a cima): “Nosso mundo corre o risco de explosão e de implosão. Tem de mudar!”.
Nós precisamos de um novo de modelo de civilização, onde a exploração, ganância, destruição ceda lugar a interajuda, solidariedade, paz, amor. E isto todos – todos, inclusive aqueles que promovem a violência contra o planeta e o ser humano – sabem e querem! O que não sabem ou não querem é o como promover esta mudança.
Para Boaventura de Souza Santos (on-line), uma nova consciência altermundista (outro mundo) está se construindo gradualmente, onde a diversidade se contrapõe ao modelo único-neoliberal-destrutivo. Este novo modelo parte das experiências e das lutas particulares de cada grupo que foi explorado, humilhado e rebaixado nos últimos milênios. E as entrelaçam em forma de rede (teia) onde cada parte se fortalece no todo e o todo ganha forças a medida que as partes crescem.
A história está cheia de exemplos de grupos sociais que foram contra ao modelo único explorador, tais como: a burguesia contra o Feudalismo; socialistas contra o Capitalismo; “democratas” contra o Socialismo-Stalinista.
O que difere esta nova concepção de mundo, que está sendo gerada, das anteriores é que ela parte do particular para se chegar ao universal, enquanto as outras partiram do geral e se impuseram ao particular (Rosa de Luxemburgo, 1981). Assim, não há um modelo único a ser seguido mas vários que se interlaçam inter-dependentes-independentes.
Os índios trazem a preocupação com a Mãe Gaia, o resgate de sua cultura e de suas terras; os sem-terra a luta pela reforma agraria; as mulheres suas lutas feministas; os negros nos mostram que há uma única especie humana; os homossexuais sua liberdade para amar e ser feliz; grupos religiosos enquanto oram, afirmam que a religião não é “o ópio do povo”, mas é intrínseca a natureza humana; ambientalistas “nos assustam” corretamente sobre a ação humana e sua influência no aquecimento global e em breve uma escassez de alimentos devido ao consumo predatório do meio ambiente, maior que sua capacidade de regeneração; economistas nos mostram uma nova forma de economia, a economia solidaria...
Estas experiências e lutas começam a se interagirem paulatinamente, e um grupo se descobre no outro, percebe que as revindicações de outro grupo se assemelha as suas e que elas ganham maior visibilidade e consistência quando as outras lutas também ganham.
A revolução não é mais armada como quis a esquerda tradicional dos anos 1960-80, mesmo porque, a revolução armada ou falhou ou desembocou na ditadura comunista, como foi a soviética. A revolução proposta é cultural, ou seja a mudança se dará no modo de pensar da humanidade.
Para mudar a cultura se faz necessário que se mude as formas de manifestações e os alicerces das culturas anteriores, pois um influencia o outro dialeticamente.
Para tal, os preconceitos patriarcais-burgueses devem ser extintos e novos devem ser criados. Tudo o que for contra a vida, nós precisamos “(...) sitiá-lo, cobri-lo de vergonha, caçoar dele: com nossa arte, nossa música, nossa literatura, nossa obstinação, nossa alegria, nosso brilho (...)” (ARUNDHATI ROY, 2002). Uma revolução estética e cognitiva, portanto, onde é exposto e enfatizado o como é bonito, alegre e bom viver no altermundo, e como é feio e triste viver no atual sistema socioeconômico.
Um novo Superego Coletivo deve ser estruturado para garantir nossa sobrevivência, a plenitude da vida humana e do Planeta, em todos os aspectos. Ele deve ser tão forte quanto os que o antecederão. E assim como estes, ele deve ser formado a partir da vontade coletiva, vontade esta que está sendo gerada no Dialogo dos grupos sociais que lutam por um novo mundo.
O Fórum Social Mundial, a Parada Gay são modelos paradigmáticos desta nova revolução. Em meio a festa, beleza, eles denunciam e ridicularizam os preconceitos existentes e visualizam uma nova sociedade, que começa ser construída no próprio evento. A utopia ou seja o não-lugar, começa a ser criado com as ações do presente.
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