Edgar Morin
Conferência na Universidade São Marcos, São Paulo, Brasil, 2005
- Bom dia a todos.
- Eu lamento muito não estar presente fisicamente entre vocês, mas espero que em breve isto seja possível.
- Enquanto isto, vamos nos comunicar graças à técnica.
- Educar para a era planetária significa que devemos nos questionar para saber se nosso sistema educacional está baseado na separação dos conhecimentos. Conhecimentos estes que as disciplinas separam, e não somente elas as separam, como tampouco comunicam. Nós aprendemos a analisar, a separar, mas não aprendemos a relacionar, a fazer com que as coisas comuniquem. Ou seja, o tecido comum que une os diferentes aspectos dos conhecimentos em cada disciplina se torna completamente invisível; ora, existe um tecido comum, mesmo que você estude economia. A economia é uma ciência extremamente precisa, baseada no cálculo. O cálculo ignora os sentimentos, as paixões humanas; além do mais, a visão puramente econômica ignora o fato de que não há só economia na economia, há também desejo, medo, crença, política. Tudo está ligado, não só na realidade humana, como também na realidade planetária. Portanto, podemos imaginar que nosso sistema educacional é inadequado. Vejam a palavra “complexidade”. Ela vem do latim complexus, “aquilo que é tecido”. Vemos, então, que nosso sistema educacional nos torna incapazes de conceber a complexidade, isto é, as inumeráveis ligações entre os diferentes aspectos dos conhecimentos. Isto é mais grave hoje, porque a época planetária se manifesta através de uma extrema interação entre fatores diversos: econômicos, religiosos, políticos, étnicos, demográficos etc. Fica mais difícil entender esta época em que o local é separável do global e o global influi sobre o local. Eu diria até que nós não percebemos que nossa vida cotidiana de indivíduo é determinada pela era planetária, que começou com a conquista das Américas, a partir de 1492, e com a navegação portuguesa pelo globo no final do século 15. A era planetária começou no início do século 16. Aqui no Brasil, por exemplo, nós ignoramos que o café, um produto tipicamente brasileiro, vem do sul da Arábia, do Iêmem. Ele se expandiu pelo império Otomano durante os séculos 13, 14, 15 e quando os turcos chegaram às portas de Viena, no século 16, eles trouxeram o café para o Ocidente. Daí o café foi transplantado para a Colômbia, o Brasil, o Venezuela, ou seja, para a América Latina. Coisas tão banais como o cavalo, que foi importado da Europa, assim como o boi, o trigo. Em compensação, na Europa estamos convencidos de que o tomate é um produto típico do Mediterrâneo, mas ele veio das Américas, como o milho também. É dizer que a era planetária começou no século 16. E hoje ela é cada vez mais forte, mais intensa. E nós devemos conhecê-la, para saber quem somos e para onde o mundo, a humanidade estão indo. O que supõe que nós nos questionemos sobre a humanidade, sobre as relações entre os humanos, sobre o conhecimento. E por que isto? Porque, curiosamente, se ensinam conhecimentos, mas nunca o que é o conhecimento. Ora, sempre há no conhecimento um risco de erro, de ilusão. Aliás, muitos conhecimentos que no passado achávamos certos, hoje os consideramos errados, ilusórios; muitas ideias que no século 20 nos pareciam justas foram abandonadas. Portanto, há sempre uma margem de erro, de ilusão, que repousa na natureza mesmo do conhecimento. Por que isso? Porque a percepção que tenho do mundo exterior não é uma fotografia do mundo exterior pelos meus olhos; os estímulos luminosos que atingem meus olhos, minhas retinas, são traduzidos por uma infinidade de células em sinais binários que são transportados, então, pelo nervo óptico até o cérebro, onde se tornam uma percepção. Ou seja, qualquer conhecimento não passa de uma tradução, de uma reconstrução. E este fato vale também para o conhecimento teórico, pois as ideias, as palavras também são traduções, reconstruções. A prova que minha percepção não é uma fotografia é o fenômeno conhecido como “constância perceptiva”: assim, mesmo que na minha retina a imagem das pessoas que se encontram no fundo da sala seja pequena e a das pessoas que estão na primeira fila seja grande, jamais vou ver as pessoas do fundo da sala como anões e as da primeira fila como gigantes. Automaticamente, sem que eu esteja consciente disso, restabeleço o tamanho real das pessoas ainda que a imagem visual que tenho delas seja diferente nos meus olhos. No entanto, este fenômeno existe e faz com que sempre corramos o risco de errar na interpretação e os erros vão se multiplicando com as ideias, com as teorias tanto que nossos conhecimentos sofrem do fenômeno psicológico que os ingleses chamam de self deception, ou seja, “mentir a si mesmo”. Frequentemente nós mentimos para nós mesmos e sequer o percebemos. Transformamos nossas lembranças, esquecemos aquelas que nos incomodam, embelezamos as ruins; o fenômeno da self deception é absolutamente cotidiano.
Então, além do erro, há uma fonte psicológica e também uma fonte cultural, pois desde criança lidamos com o que chamo a unprainting cultural, que é a marca da cultura através não só da linguagem, como das ideias fortes, das crenças. Em geral, quando a marca de uma cultura é muito forte, ela impede que as ideias diferentes, não conformes a ela, se exprimam. Há um fenômeno que podemos chamar de normalização, ou seja, tudo aquilo que não é normal é afastado e há também um processo de eliminação de tudo que parece ser desviante. Portanto, quando estamos numa sociedade pluralista em que tal normalização não chega a ser tão massiva, mas que perdura assim mesmo, inclusive no meio cientifico, há uma tendência em ver-se certos dogmas se consolidarem e durarem. É, por exemplo, o problema da marca cultural ou, mais profundamente ainda, o problema do que podemos chamar os “paradigmas”, isto é, os princípios que organizam o conhecimento de uma forma sobre a qual estamos inconscientes. Falando do sistema educacional, um paradigma que chamaremos “simplificação” domina nosso ensino, em que para conhecer nós separamos, reduzimos o que é complexo a simples. Tal visão mutila nosso conhecimento. O problema, então, é conseguirmos obedecer a um paradigma que possibilite diferenciar e ao mesmo tempo relacionar. E justamente o paradigma que domina o conhecimento na nossa civilização e na nossa sociedade é um paradigma que impede o conhecimento complexo, o conhecimento da era planetária.
E, enfim, existe outro obstáculo ao conhecimento que tentei levantar no livro O método, que trata do tema da possessão pelas ideias. Nós pensamos ter ideias que utilizamos para conhecer, o que é certo, porém, isto é apenas um dos aspectos da realidade. Na verdade, as ideias que surgem numa comunidade tomam força e energia. Não somos sós nós que as possuímos, elas também nos possuem. Isso é verdade no que diz respeito aos deuses, às religiões: é verdade que a fé de uma comunidade cria os deuses. Mas esses deuses, uma vez que existem, têm um poder enorme, eles nos obrigam a nos ajoelhar diante eles, a suplicá-los, eles nos dão ordens, pedem que façamos sacrifícios, podem até pedir que sacrifiquemos nossa própria vida. E o que é verdade para os deuses, vale também para as ideias, o que chamamos de ideologia. Podemos morrer, matar por uma ideia. Isso já aconteceu e isso voltará a acontecer. Então, como não ser possuído por estas ideias?
Como manter uma relação civilizada? Como controlar as ideias? Porque só podemos lutar contra essas ideias com outras ideias. E como ter ideias em uma escala humana? Então, temos todos estes problemas juntos, que nos mostram que a questão do conhecimento, ou seja, de conhecer o conhecimento não pode ser algo reservado a uma elite de estudiosos da epistemologia, confinados num ensino restrito, filosófico. É algo que deve começar no ensino primário e prosseguir no ensino secundário, e continuar na universidade.
Além do mais, há outro aspecto no conhecimento que é a pertinência. Um conhecimento pertinente não é um conhecimento sofisticado, ou fundado sobre cálculos rigorosos. Um conhecimento pertinente é aquele que permite situar as informações que recebemos no seu contexto geográfico, cultural, social, histórico. É claro que estamos permanentemente aprendendo nomes de lugares, de países que desconhecemos, como foi o caso com o Timor Leste ou o Kosovo e as informações que recebemos, por exemplo, sobre acontecimentos como um tsunami, ou um terremoto no Paquistão, não significam nada se não conhecemos a geografia e também a história, a cultura, ou seja, precisamos contextualizar e situar um conhecimento peculiar no conjunto global a que ele pertence. Então, é certo que o ensino de uma disciplina isolada atrofia a aptidão natural da mente a contextualizar os conhecimentos. Como já falei, as ciências baseadas unicamente no cálculo ignoram a humanidade dos sentimentos e da vida concreta. É por isso também que não devemos pensar que o melhor conhecimento é aquele que se exprime através do cálculo. Devemos usar o cálculo, mas existem outros modos que escapam ao cálculo e que nos são necessários. Então, o contexto situa uma parte dentro da totalidade em que ela está inserida, mas também o todo numa parte. Porque na complexidade não há só partes que constituem o todo, há também o todo na parte. Por exemplo: enquanto organismo, sou feito de células diferentes e de células que constituem minha pele. Cada célula contém a totalidade de meu patrimônio genético, mas, claro, a maior parte deste patrimônio está inibido e só aquela que diz respeito a minha pele se exprime.
Mas hoje nós sabemos que podemos, com uma única célula, em boas condições, estimular este patrimônio e criar um clone meu. Em outras palavras, não somente a célula é uma parte do meu organismo todo como a totalidade do meu organismo se encontra numa única célula minha. Outrossim, cada um de nós é uma pequena parte da sociedade, mas a sociedade, como um todo, se encontra em cada indivíduo através da linguagem, da cultura, da família. Ou seja, a relação “tudo é parte” é muito complexa e assim como eu disse no início dessa conferência somos indivíduos no planeta, mas na realidade o planeta está em cada um de nós, o que torna mais importante ainda a necessidade de conhecer a era planetária. Por isso, no meu trabalho sobre o método procurei elaborar instrumentos de pensamento que nos permitam ligar os conhecimentos, para que possamos relacionar o conhecimento da parte e do todo dentro do que chamei “princípio do holograma”, pois no holograma uma pequena parte singular contém a totalidade do que está representado. Mas não vou desenvolver este aspecto, seria muito demorado.
Quero dizer simplesmente que com o “princípio do holograma”, com a ideia da recursão, da dialógica, tentei elaborar instrumentos para pensar, sem os quais não podemos entender a complexidade do real, isto é, a complexidade da era planetária.
Isto dito, o que é a era planetária? É uma era em que todos os seres humanos se encontram unidos numa espécie de comunidade do destino cada vez maior. Mas então surge algo mais importante ainda para o conhecimento, que é saber o que é “ser humano”? O que é a identidade humana? O que é a condição humana? Percebemos que tudo isso é completamente ignorado no nosso sistema educacional. Existem as ciências humanas, mas elas são separadas umas das outras e se comunicam muito mal: a história, a sociologia, a psicologia, a ecologia, a demografia, a economia são vizinhas, mas não se comunicam. Por outro lado, a realidade humana não reside só nas ciências humanas, ela se encontra também nas ciências biológicas uma vez que nós não somos unicamente animais, mas somos também animais. Sabemos que 98% de nosso genótipo é idêntico ao do chimpanzé. A diferença é que ele se organiza de outra maneira. Somos animais como os outros animais, temos um cérebro, um fígado, um baço, um coração, em suma, fazemos parte do mundo da vida e somos não só seres vivos, não só primatas e mamíferos, somos também máquinas, máquinas psico-químicas. Meu organismo funciona a 37°, ele é uma máquina térmica que gasta energia e produz calor. Por isso precisa se alimentar para recuperar energia. Mas sabemos que somos feitos de elementos psico-químicos cujos mais elementares se formaram praticamente ao mesmo tempo que o universo, nas partículas que surgiram há 15 bilhões de anos; sabemos que os átomos de carbono surgiram num sol anterior ao nosso, que as moléculas que se uniram para formar o ser humano se juntaram na Terra; em suma, não se pode destacar os seres humanos da aventura cósmica e da aventura da vida. Claro que somos diferentes pela consciência, pela cultura, pelo pensamento, mas somos ao mesmo tempo animais e, mais do que animais, somos seres vivos e mais do que seres vivos - e é esta realidade que precisamos entender hoje principalmente, porque a ignoramos antes. Por termos ignorado essa realidade, as forças técnicas enfureceram-se sobre o planeta, provocando hoje um problema de degradação das condições da biosfera que vai ameaçar nossa própria existência nos próximos dez anos.
Pensando conquistar e dominar o mundo nos atiramos numa aventura que está nos levando à destruição. Precisamos sentir até que ponto devemos não nos reduzir a seres naturais, mas mostrar nossa condição de ser natural e nossa condição específica de ser humano. Isso faz parte da condição humana e a condição humana é o quê? Somos triplos, uma espécie de trindade humana: indivíduos, uma espécie e membros de uma sociedade, três coisas absolutamente inseparáveis porque, por exemplo, como indivíduos somos o produto da reprodução sexual; para que a reprodução da espécie continue, é necessário que dois indivíduos se acasalem, ou seja, a espécie produz os indivíduos que produzem a espécie; nós, indivíduos, produzimos a sociedade por nossas interações, mas a sociedade, com sua cultura, nos transforma em indivíduo plenamente humano. A sociedade produz o indivíduo que produz a sociedade. Esse laço fundamental entre esses três aspectos, que tendemos a dissociar, é indispensável ensinar, o que não ocorre. Por outro lado, a maneira como pensamos nos torna incapazes de conceber ao mesmo tempo a unidade e a diversidade humana, o que faz com que a unidade humana, que é genética, anatômica, cerebral e afetiva, seja incontestável, mas aqueles que enxergam a unidade não veem a diversidade; e quem vê as diversidades humanas, as diferenças entre os indivíduos, entre as raças, entre as culturas, entre as línguas, passam a não perceber a unidade, quando é necessário ver ambas as coisas. É isso, a meu ver, a complexidade: uma unidade que produz a diversidade. Por exemplo, dizemos que o que é específico da humanidade é a cultura, ou seja, a linguagem, o saber que se transmite etc. Certo, mas nunca percebemos a cultura que conhecemos pelo prisma das outras culturas; o que caracteriza o ser humano é a linguagem, certo, mas a linguagem não existe, ela só existe através das línguas que diferem umas das outras. Todas as sociedades possuem sua música, mas a música em si não existe. Conhecemos a música através das músicas. E preciso ser capaz de pensar a unidade e a diversidade, isso é capital. Por quê? Porque hoje o que é que está sendo ameaçado é a espécie humana enquanto unidade, porque existem enormes riscos para a biosfera, riscos de tipo nuclear, com as armas de destruição massiva; riscos de uma nova guerra, que ameaçam acabar com a espécie humana; então a humanidade está ameaçada enquanto espécie. Mas ao mesmo tempo o processo de unificação ameaça as diversidades culturais. Hoje há uma tendência para a homogeneização. É preciso querer salvar, preservar as diversidades culturais que são uma riqueza para a humanidade. Portanto, devemos proteger a unidade e a diversidade e se não tomarmos consciência disso estaremos cegos, cegos se protegermos a diversidade local sem levar em conta o interesse de todos, ou se pelo contrário protegermos uma humanidade abstrata sem levar em conta as realidades concretas que são diversas. Além do mais, a condição humana é prisioneira de uma visão muito restrita da nossa concepção do homo spiens, do homo faber, do homo economicus. Homo sapiens significa o homem como ser racional; o homo faber é o homem que cria técnicas e o homo econimicus é o homem que age em função de seu interesse econômico pessoal. É verdade que o homem é racional, ele desenvolveu a racionalidade, mas ao mesmo tempo criou a loucura, o delírio. Eu digo que o homo sapiens é ao mesmo tempo o homo demens, capaz das maiores loucuras, até as mais criminosas, as mais insensatas. Não se pode separar os dois, porque entre os dois circula a afetividade, o sentimento, não existe racionalidade pura, até o matemático completamente dedicado à racionalidade matemática o faz com paixão.
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