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terça-feira, 26 de julho de 2011

Um Jesus

Wilson Horvath




Era uma manha fria e chuvosa de domingo; acordo com os berros e choros vindos da casa vizinha. Todos os finais de semana são a mesma coisa! Se eles não se separarem, qualquer dia, um matará o outro.
Eu levanto e coloco a água para fazer o café e ouço a minha porta sendo esmurrada. Ai, meu Pai! Será que é um daqueles dois? As brigas começaram depois que a esposa descobriu as traições do marido; então, ela resolveu pagar na mesma moeda... Um erro não justifica o outro, a Lei de Talião já não foi extinta?! Eles, ao invés, de viverem em guerra, deveriam traçar novos caminhos para suas vidas e buscarem ser felizes.
Mais murros na porta e ouço a voz estridente e raivosa da velha: “Seu Emanuel... Emanuel!”.
Eu mal destranco a porta, a velha empurra a porta e entra junto com o playbozinho de seu filho. E começa a gritar: “Seu Emanuel... se o Senhor não pagar a merda do aluguel, te tiro da casa igualzinho se tira a galinha do choco! Está entendo Seu Emanuel?”
Fico um momento fora de mim. Olho para a imagem de Nossa Senhora Aparecida e peço: “Valei-me minha mãe!”.
O playbozinho entorta a boca, mete o dedo em minha cara e fala, cuspindo: “Se em uma semana, o Senhor não pagar; rua! Tá!? Seu velho bêbado!”.
Eu sinto meus olhos lagrimejar. Mas, seguro o choro e falo: “Dona Marta! Eu nunca deixei de pagar; a sua irmã Maria, que o Pai a tenha, sempre me elogiava; eu até podia atrasar um pouco, mas sempre cumpria com meu dever... Só que depois do acidente, na marcenaria, ninguém mais quer me dar trabalho”.
O playbozinho dá uma risada esculachada, vai abaixando a cabeça até ficar na altura de meus olhos e diz: “Ema-ema-ema! Cada um com seu problema. Ado-ado-ado! Cada um no seu quadrado!” E a velha completa: “Eu não tenho nada haver nem com o Senhor nem com a falecida. Eu não sou ela. Eu até acho que vocês dois mantinham uma amizade meio suspeita. Mas, nem quero saber disso, só sei que ela deixou este barraco de herança para mim e eu quero o meu dinheiro. Ou o Senhor paga ou rua”.
Eu tenho explicar: “Dona Marta, mas...”. Mas velha me interrompe: “Nem mais nem menos, o Senhor tem sete dias, seis, pois se não pagar... no domingo, o Senhor está na rua”. E sai, batendo a porta.
Caio de joelhos, implorando a Deus: “Meu Pai, meu Pai, por que me abandonaste? O que eu fiz para receber tamanho castigo?” Sinto minhas cicatrizes sangrarem. Levanto, enxugo o sangue. Afinal, eu não posso ficar questionando a Deus e vou à missa.
Igreja cheia, pessoas cantando; o padre muito elegante, usando uma capa dourada, inicia a celebração. Ele nos cobra de nossos pecados, fala que precisamos viver a castidade, que precisamos vencer a tentação. As pessoas choram, outras abaixam a cabeça. Eu não! Olho para o padre. E ele não teve coragem de olhar para mim, pois ele sabe que eu sabia, e de tudo o que ele fizera.
Depois, eles incensaram o altar. O Padre, assessorado por dois coroinhas, cada qual segurando uma vela, lê um trecho do Evangelho do Apóstolo Mateus:
“Depois, o Rei dirá aos que estiverem a sua esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos. Pois eu estava com fome, e não me destes de comer; com sede, e não me destes de beber; eu era forasteiro, e não me recebestes em casa; nu, e não me vestistes; doente e na prisão, e não fostes visitar-me. E estes responderão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso, e não te servimos?’ Então, o Rei lhes responderá: ‘Em verdade, vos digo, todas as vezes que não fizestes isso a um desses mais pequenos, foi a mim que o deixastes de fazer!’ E estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna”.
O padre começou a explicação do Evangelho. Ele disse que Jesus estava sem roupa e alguns não lhe deram de vestir, esses serão lançados no fogo eterno. Da mesma forma, a Igreja hoje estava nua, sem as reformas necessárias. Então, era necessário que todos unissem para vestir a Igreja. E aqueles que não participassem desta grandiosa obra seriam laçados no fogo eterno. E anunciou a forma como se daria a arrecadação de fundos para a reforma: Uma apresentação e show, no próximo domingo, do Padre Anás – um padre muito famoso por suas músicas e programas na televisão.
O padre lançou algumas palavras de ordem: “Quem aqui vestirá Jesus?” e as pessoas respondiam, euforicamente: “Eu vou!”; “Quem irá ao show do Padre Anás?”, “Eu vou!”... No final da celebração, todos comentavam sobre o show.
Eles espalharam outdoors anunciando a apresentação por todos os cantos da cidade; o show do Padre Anás estava em todos os sites de baladas e agitos da cidade, ao lado de grandes artistas da música juvenil. Aquela apresentação se tornou a maior festividade da cidade.
Em casa, eu fui fazer o almoço, não tinha praticamente nada. Só um pouco de feijão, sal, óleo e farinha. Enquanto cozinhava, comecei a rezar: “Ai! Meu Pai celestial! Como as coisas estão difíceis!? O que eu faço? Se fosse antes do acidente, teria melhores condições, mas e agora? Eu mal tenho o que comer e ainda tenho que pagar o aluguel. Mas, não posso deixar de participar da reforma da Igreja, tenho que vestir Jesus; preciso arrumar dinheiro para ir ao show...”
Eu liguei a televisão, enquanto almoçava, o Padre Anás estava falando. Como ele fala elegante! Um padre muito vistoso, de pele delicada, o cabelo muito bem penteado parecia lã de cordeiro, um homem de fino trato. Ele falava pausado, manso, olhando bem nos meus olhos.
Eu me lembrei do Padre João Batista, nosso antigo pároco. Êta homem marrento! Ele vestia uma batina toda surrada e encrencava com tudo. Ele brigou com o prefeito porque o esgoto corria a céu aberto e não tínhamos água tratada. Ele dizia que isso era o motivo de tantas crianças morrem, antes de completarem um ano. Eu acho que ele queria é ser médico, padre não entende de doença, né!? É, é isso mesmo! Teve uma vez, que ele falou para todos do bairro irem à prefeitura para pedirmos a construção de um posto de saúde. Foi um auê total! Foi gente de outras igrejas e foi até pessoas que se diziam ateu. Nós levamos cartazes, faixas; os meninos estavam munidos de cuica, pandeiro e surdo. Não demorou muito para eles construírem o posto. Mas, aquele homem nunca se dava por satisfeito; ele começou a encrencar para que se construísse uma creche, no bairro... E em uma noite, após a celebração, eles o mataram com três tiros no peito, e os assassinos não se contentado, decapitaram a sua cabeça.
Coitado! Mas, não tenho dó, não! Eles o mataram, porque ele foi atrás de sua cruz. Agora, me diga. Quem vai ter vontade de fazer alguma maldade para o Padre Anás? Olha só para ele! Ele só fala coisas bonitas. Ele não mexe com uma mosca! E é amigo de todo mundo, ele sempre aparece ao lado dos deputados e do governador. Ele quer a paz e não a espada, conforme quisera o Padre João Batista.
Eu tenho que arrumar um dinheiro para ver de perto este homem. Ele não é um homem qualquer, ele é um santo que vive no meio de nós. Vou pedir emprestado. Vou falar com o senhor Fábio, meu antigo patrão. Ele está me devendo um dinheirão de indenização, no mínimo umas setenta vezes a mais do que lhe pedirei; e não é emprestado, é um adiantamento. É... é isso que vou fazer. Amanhã, bem cedo!
No escritório do senhor Fábio, ele me recebe de cara feia e diz que só lhe trago problemas e pergunta qual era o problema que eu traria daquela vez. Explico o porquê de minha ida. Ele me repreende e diz que o seu escritório não era instituição de caridade e que Madre Tereza estava morta e enterrada e ele não era nenhum Francisco de Assis.
Eu suplico o dinheiro a ele. Ele faz uma pausa, pensa um pouco, então, diz que me emprestará metade do dinheiro, mas para tal, eu precisaria mostrar que era seu amigo, pois ele era meu amigo. Eu deveria retirar o processo sobre a indenização. Concordo, pois como diz o ditado: “quem encontra um amigo, encontra um tesouro”. Então, ele tira da gaveta algumas notas e as jogam em cima da mesa. Ele levanta, bate em meu ombro, me dá um abraço e um beijo no rosto, diz que me encontrará no show do Padre Anás e me leva até a porta.
Na volta para a casa, passo em frente a alguns pontos de vendas de ingresso para o show do padre, os melhores bares da cidade, só gente granfina e importante frequentava aqueles lugares. Vejo alguns adolescentes, de grupos de jovens da Igreja, comprando ingressos. Eles estavam tão felizes e não paravam de chegar, todos com camisetas contendo mensagens religiosas, que após a compra, ficavam nos bares, reunidos a fim de esperar a chegada de outros adolescentes; era uma felicidade geral que tomara conta daqueles lugares, antes considerados profanos, agora apêndices do sagrado.
Eu encontro algumas madeiras de uma construção, rejeitadas pelos pedreiros, pego aquelas madeiras e fabricos bancos e consigo vender alguns deles, o que me proporcionou o restante do dinheiro para comprar o ingresso, bem no domingo, dia da apresentação. O ingresso, no dia da apresentação, era mais caro, mas não importava. Foi um milagre conseguir o dinheiro. Tomo banho, visto minha melhor roupa e vou para o show.
Eu nunca vi tanta gente, a cidade inteira estava lá; passou o prefeito, os vereadores; vi o senhor Fábio conversando alegremente com o juiz; o casal, meus vizinhos briguentos, estava de mãos dadas, aparentando a maior harmonia; a dona Marta e seu filho também estavam lá, eles sorriam e abraçam a todos. Eles, na frente de outras pessoas do grupo de oração, me cumprimentaram; dona Marta disse para suas amigas que eu era seu inquilino e estava em sua casa há trinta anos. Eu tinha esquecido completamente do aluguel, mas com certeza, depois daquele show, eles me dariam mais uma semana; depois conversarei com eles; agora era só alegria!
O local até lembrava as apresentações dos grandes artistas do forro e sertanejo universitário, mas estava mais fashion, muito mais! Polícias e seguranças para todos os lados. A única coisa meio estranha é que do outro lado da calçada havia um grupo de pedintes, eles queriam ficar na calçada do evento, mas eram expulsos de lá pelos policiais e seguranças.
De repente, escuto um foguetório e aparece um carro grande e preto, bem chique, que nem sei o nome e um monte de policiais de moto o escoltando. Do carro desce o Padre Anás; a multidão foi à loucura. As mulheres se descabelavam; os homens urravam conforme na apresentação do Fenômeno, no Corinthians. Então, os policiais e seguranças formaram um cordão de isolamento para impedir que a multidão dele se aproximasse.
Uma das pedintes, porém, conseguiu furar o bloqueio e puxou a roupa do padre tão forte, que este foi obrigado a se voltar a ela. Ainda bem, que os policiais conseguiram tira-la de perto do padre e lá mesmo lhe deram um monte de tapas e pontapés. E o padre pode continuar o seu caminho em direção ao palco, tranquilo e sem ser incomodado por mais ninguém.
Eu me pus na fila para comprar o ingresso. A fila estava imensa, era um empurra-empurra só, uns engraçadinhos cortavam a fila. Fiquei uns vinte minutos lá. Eu estava no meio da fila, então, uma mulher veio me pedir ajuda. Ela disse que tinha sofrido um acidente e me mostrou as cicatrizes e falou que depois deste acidente, ela não conseguia mais emprego e se ela não conseguisse dinheiro para pagar o aluguel, ela seria despejada de sua casa e não teria para onde ir. A sua história cortou o meu coração, ninguém pode ficar sem um lar, isto é indigno da condição humana. Eu olhei para o alto, dei uma respirada forte e lhe entreguei o dinheiro que seria usado para comprar o ingresso.
Eu estava voltando para a casa, mas recebi um milagre, encontrei um buraquinho no muro do estádio, onde estava ocorrendo o show. Então, abaixei e pude ver a apresentação. Nossa! Que coisa mais linda! O Palco estava todo iluminado, com vários jogos de luzes. E lá estava muito organizado, havia camarotes exclusivos, nos quais estavam presentes as pessoas ilustres da cidade: políticos, profissionais liberais, empresários. No campo, ficavam os demais. Todos cantavam e rezavam! Batiam palmas! Choravam! Riam!
Havia várias barraquinhas, que vendiam os mais variados produtos religiosos: camisetas, imagens, terços, bíblias etc. Mas, também havia produtos não religiosos, tais como: lanches, refrigerantes, água (havia água benta e a normal), adereços, chapeis etc.
Eu nunca tinha visto nada tão bonito como aquele show! Fui o último a ir embora, pude ver o padre saindo, ele abençoou os presentes com um crucifixo de ouro. Fui abençoado por aquele santo! E vi os homens desmontando o palco; vi muitos homens carregando vários malotes de dinheiro. Este dinheiro daria não só para reformar a nossa igreja, mas construir várias delas. Fui para a casa muito feliz, pois, tinha presenciado tamanha graça. Fui devagar, pensando em todas as maravilhas que havia presenciado.
Eu, perto de casa, comecei a ouvir os gritos da briga do casalzinho... Ao chegar a minha casa, encontrei minhas coisinhas jogadas do lado de fora e um cadeado na porta. Não era muita coisa, mas era só o que eu tinha. Neste momento, não aguentei e comecei a chorar. Chorei por quase uma hora, nunca fizera isto, pois homem não chora, mas naquele dia, perdi a minha vergonha, pois doravante, não teria nem mais um lugar para repousar a cabeça.
Uma mensagem do céu veio a mim: Deveria procurar o Padre Anás, pois ele me ajudará. É claro! Porque não pensei isto antes? Eu nem precisaria ter ficado ali prostrado, chorando feito uma menininha; deveria ter ido direto conversar com o padre.
O padre estava hospedado no melhor hotel da cidade. Havia uma multidão de pessoas na porta e um número proporcional de seguranças. Eu conversei com um dos seguranças e expliquei que precisava falar com o Padre Anás. O segurança riu de minha cara e disse que nem o Papa conseguiria tal feito.
E agora? O que eu posso fazer?
Neste momento, encontro o Zaqueu; nós dois tínhamos trabalhado na construção daquele hotel, anos atrás. Conto o acontecido para ele; então, o Zaqueu como sempre, teve uma ideia brilhante: Disse para eu subir pelo telhado e depois descer até o quarto, onde estava hospedado o padre.
Quem fez aquele telhado fui eu e ninguém o conhecia tão bem. Nós dois fomos para o fundo do hotel. Zaqueu me ajudou a subir até o telhado, tirei uma telha e fui engatinhando até o alçapão, minhas cicatrizes se tornaram feridas abertas, mas não fazia mal, pois estava prestes a receber uma grande graças.
Eu desci bem de frente ao quarto do padre; abri a porta, e um maquiador estava terminando de tirar a sua maquiagem. O padre não era tão bonito sem maquiagem, em verdade, bem feinho, parecia até um logo-guará; mas não estava lá por causa da beleza, estava lá para pedir ajuda. Porém, quando o Padre Anás me viu, ele levou um baita susto e chamou os seguranças. Tentei explicar, mas ele estava muito amedrontado e não conseguiu me ouvir. Mas, pudera, eu estava todo sujo e minhas feridas não paravam de sangrar, o que causou muito horror no Padre Anás.
A polícia chegou imediatamente gritando: “Perdeu! Perdeu vagabundo! No chão! Chão! Anda, anda, se não, atiro”. Os policiais me sufocaram e rasgaram toda a minha roupa, deixando-me praticamente nu. A multidão do lado de fora do hotel ficou sabendo do acontecido. Eles se revoltaram contra mim, todos achavam que eu estava lá para fazer alguma maldade àquele santo homem. E tentaram me linchar, ao sair do hotel, algemado pelos policiais. Nem sei quantos socos, tapas, pedradas que recebi. Eles pediam para me matar...
Minha sina só estava começando... Na delegacia, apanhei direito... Levei trinta e nove chicotadas até não aguentar mais de tanta dor e desmaiar. Então, fui jogado, desacordado, na cela. Por sorte, havia um Bom Samaritano, um travesti de sobrenome: Arimateia, que me pôs na cama, curou os meus ferimentos e vestiu-me.
Eu só acordei no dia seguinte, achei que o Padre Anás me visitaria. Então, teria a oportunidade de explicar a ele o que de fato tinha ocorrido. E ele, com certeza, me libertaria da prisão e me levaria com ele, como seu discípulo... Mas, ele não veio...
Eu liguei a televisão da cela, o Padre Anás estava falando, ao vivo. Ele comentou do show ocorrido em minha cidade, disse que foi muito bom, uma benção de Deus, e só aconteceram coisas boas lá. Ele não mencionou o fato ocorrido comigo; acho que ele não sabia que estava preso e por isso não veio me visitar.
Eu fiquei por três anos na prisão, sem receber a visita de ninguém. Fiquei lá até o dia que morri. Então, fui jogado em uma cova; ninguém mais sabia quem eu era. Logo, ninguém compareceu ao meu enterro e ninguém chorou. E hoje, ninguém sabe onde está o meu corpo.

2 comentários:

  1. Passei para deixar um abraço e dar as boas vindas á Cia dos Blogueiros. E interessei-me pelo seu texto, muito boa a sua adaptação. Ressuscitou? rs...
    Grande Abraço!

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  2. Gostei muito, não sei porque,mas me lembrou muito a história da paroquia que eu frequentava. rsrs
    abraço.

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