GUILHERME PAVARIN (Fonte: Revista Época)
O
pensador francês diz que o risco de uma catástrofe global pode oferecer novo
rumo à humanidade
O pensador francês Edgar
Morin, de 91 anos, é dono de incontáveis memórias. Filho único de uma família
judia, testemunhou, quando jovem, em Paris, a expansão nazista de Adolf Hitler.
Na Segunda Guerra Mundial, a fim de combater os alemães, foi para o campo de
batalha pela Resistência Francesa. Aderiu, em 1941, ao Partido Comunista, do
qual seria expulso anos mais tarde por criticar Josef Stalin. Assumiu-se ateu.
Escreveu dezenas de livros que viraram referências para universidades de todo o
mundo. Criou teorias influentes, como a do “pensamento complexo” — que disseca
a racionalização humana. Criticou sistemas econômicos e políticos. Hoje fala
dos perigos do progresso tecnológico.
Tido como um dos grandes
intelectuais vivos, Morin está no Brasil para trazer à tona algumas dessas
passagens de sua vida. Ele está lançando, pela editora SESC SP, três volumes em
português de seus Diários: “Diário da Califórnia”, “Um ano sísifo” e “Chorar,
amar, rir, compreender”. Escritos em diversas etapas da vida do autor, as obras
misturam reflexões de fatos históricos com passagens da vida particular, como a
traição de um amigo e a doença de sua mulher, Edwige, que morreu em 2008.
De fala pausada e olhar
sereno, Morin concedeu uma entrevista a ÉPOCA, no hotel em que está hospedado,
em São Paulo, onde disse como enxerga o futuro da humanidade. Para ele, que se
define com um “otipessimista”, a grande saída para um mundo próspero continua
sendo a educação. Quer que o mundo faça uma reforma completa no sistema
educacional. “Hoje só há os especialistas que veem os problemas em pedaços”,
diz. “Os conhecimentos fragmentados nos impedem de ver e conceber os problemas
fundamentais, que são globais.”
ÉPOCA - Em muitos de seus
artigos, o senhor afirma que o mundo está caminhando rumo ao abismo. Sintomas
disso são as guerras religiosas, as catástrofes ambientais e as crises
financeiras. É possível frear essa autodestruição?
Edgar Morin -
Espero que sim. A experiência histórica mostra que as mudanças chegam de modo
que nenhuma previsão é capaz de captar. Pense nos períodos antes das religiões.
Precisou haver uma pessoa marginal, desviante, como Buda, Jesus Cristo ou
Maomé, para que surgissem. O mesmo vale para os sistemas políticos. O
capitalismo surgiu com o avanço das técnicas no mundo feudal. O socialismo
começou com três ou quatro pensadores e em 20 anos ganhou força. Todos esses
exemplos surgiram de forma inesperada, contra a corrente. Então, se agora não
podemos ver uma possibilidade de mudar, não significa que não exista. Temos que
ampliar nossas visões. Agora não temos uma consciência geral de como lidar com
todas as ameaças: econômicas, ambientais, entre outras. Tenhamos como o exemplo
o tema da biosfera. Em junho, houve a Rio+20, onde não se chegou a um acordo
global. Isso só ocorreu porque os interesses nacionais e particulares são mais
fortes que o interesse comum e global. Somente com o agravamento da situação
global chegaremos a essa consciência em comum. Há uma frase do poeta alemão
Friedrich Hölderlin (1770-1843) que resume: “Onde há perigo, cresce também o
que salva”. O perigo pode nos salvar. Acredito que, quando se faz presente, o
perigo dá uma possibilidade de consciência de ação. Estamos chegando a esse
período. É um terreno instintivo, e a regeneração é sempre mais lenta. Espero
que mudemos com o crescimento dos perigos.
ÉPOCA - Desde 2008,
passando pelas manifestações do ano passado até a crise econômica nos países
europeus, muito se falou em sinais de um colapso do capitalismo. O senhor acha
que pode haver um sistema mais eficaz?
Morin - O modo fundamental
para impedir a dominação e a especulação financeira nas várias nações do mundo
é a criação de um novo meio de tomada de decisões em nível planetário. As
nações não têm poder suficiente para impedir as multinacionais. Temos a
necessidade de organizarmos instituições comuns que não existem na ONU
(Organização das Nações Unidas) para tratar dos problemas mais perigosos,
complexos e terríveis do nosso tempo — como o controle das armas nucleares.
ÉPOCA - Qual é o papel do
intelectual no mundo atual?
Morin - O papel dos
intelectuais é expor os problemas fundamentais e globais para todo ser humano.
Eles devem olhar para as tensões. Hoje só há os especialistas que veem os
problemas em pedaços. Nosso sistema de educação também é de separação. Os
conhecimentos fragmentados nos impedem de ver e conceber os problemas
fundamentais, que são globais. Existe uma reforma do conhecimento que é
necessária, e este é também o papel dos intelectuais. Mas não basta os
intelectuais exporem os problemas fundamentais. Precisam não se iludir. No
passado, muitos intelectuais se iludiram.
ÉPOCA - Como evitar as
ilusões? A reforma na educação que você propõe teria esse papel?
Morin - Fiz três livros
sobre as necessidades de uma reforma na educação. É mais do que uma revolução
pedagógica. Hoje todos os sistemas educacionais fazem uma separação dos saberes
em compartimentos. Precisamos religá-los para que as mentes possam conceber e
tratar problemas fundamentais e globais. Devemos introduzir na educação
questões como a possibilidade de equivocar-se e de encontrar conhecimentos
pertinentes. Também temas como a limitação da compreensão humana, o aprendizado
para enfrentar incertezas e a compreensão do significado de uma mundialização
de uma história planetária. São tópicos fundamentais para nos dar a
possibilidade de enfrentar os problemas vida. Precisamos de tudo isso para um
futuro melhor.
ÉPOCA - Nos últimos anos,
vemos uma popularização dos livros de autoajuda. Muitos autores agrupam temas
como filosofia e sociologia, simplificando-os em passos simples para uma vida
prática. Como o senhor vê esse movimento?
Morin - Vivemos uma época
de impulsos, de interrogações, de medos. Nesse momento as pessoas procuram
caminhos e salvação. É evidente que chegam os profetas. Grandes, pequenos e os
falsos profetas. É normal isso. Muitas crenças do passado, sabemos, foram
grandes ilusões. As pessoas buscam esperança e salvação. A questão do nosso
tempo é encontrar um caminho que não seja de ilusão.
ÉPOCA - O senhor também se
mostra um crítico do progresso tecnológico. Em meio a tantas descobertas, o
senhor vê questões preocupantes que deveriam ser abordadas com mais frequência.
Por quê?
Morin - O progresso
tecnológico e científico tem duas cargas distintas: uma benéfica e outra de
manipulação. É o caso do descobrimento da energia nuclear, que também era e é
utilizada para criar armas de destruição em massa. Tem também as manipulações
múltiplas de cérebro, da genética e muitos outros perigos que se apresentam
como benévolos. Nós vemos tudo a partir de uma ciência biológica que está
contaminada pelo proveito do capitalismo. Há muitos interesses por detrás.
Quanto ao avanço da tecnologia e da inteligência artificial, a questão é sempre
dominá-las e não ser dominados por elas. Penso que é uma luta permanente.
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