Retomando o título das
palestras do ciclo da Mostra de Artes realizada pelo SESC, encontramos o termo
"latinidade" no plural: "latinidades". Diante disso,
sabemos, nas latinidades existe a latinidade, e realmente é importante estudar
esse conceito a partir da origem, ou seja, Roma.
Existem duas faces
complementares daquilo que chamaremos de "romanidade". A primeira é
histórica e surge das conquistas extremamente bárbaras, tomando-se como ponto
de partida a cidade de Roma e subjugando de forma implacável e destrutiva a
Itália e o mundo mediterrâneo. Os estudiosos da história antiga recordam-se da
destruição total de Cartago e sua grande civilização púnica; o saque e a
destruição total da grande cidade grega Corinto; o cerco à Numância, povoado
espanhol, com sua vã resistência e, por fim, seu extermínio. Mesmo no próprio
mundo romano, aconteceram ferozes repressões às revoltas de escravos, como a de
Espártaco, e a destruição da república e da democracia, com o surgimento de um
império e seu "divino" imperador.
Em continuação,
defrontamo-nos com uma segunda — e paradoxal — face dessa latinidade. Da
conquista feroz da qual falamos emerge não somente um império pacífico, mas
também civilizador. Uma civilização com virtudes ao mesmo tempo integradoras e universalistas.
A primeira integração foi a
dos gregos, assim que Roma conquistou a Grécia. Em veículos de transporte, nas
carruagens triunfantes dos vencedores, chegaram escravos gregos e com eles a
cultura grega foi progressivamente difundida no império. E, como vocês sabem, o
grego tornou-se o idioma do império bizantino após a desintegração de sua
porção ocidental, o que tornou verdadeiro o adágio latino: "A Grécia
vencida venceu seu bárbaro vencedor".
Qual a contribuição da
Grécia vencida? Um pensamento universal criado e desenvolvido por seus
filósofos e, principalmente, a célebre máxima humanista de Protágoras : "O
homem é a medida de todas as coisas", que encontra eco em Terêncio, autor
latino de teatro totalmente influenciado pela cultura grega. Em uma de suas
obras encontramos a célebre frase: "Homo sum: humani nihil a me alienum
puto", ou seja: "Sou homem: nada do que é humano me é estranho".
É claro que essa universalidade e esse humanismo são extremamente limitados, e
deles não participam escravos.
Na Grécia, na Atenas da
grande filosofia, Aristóteles dizia: "O escravo é uma ferramenta animada",
isto é, um objeto e não um ser humano; portanto, tratava-se da exclusão dos não-cidadãos.
Sim, esse universalismo é potencial como a democracia nascida em Atenas, que se
destina exclusivamente aos cidadãos. Porém, a idéia democrática carrega em si o
potencial da universalização, fato que se tornou a tarefa da democracia
moderna.
Contamos então com esse humanismo
universal, que irá permear a cultura latina, e a seguir teremos uma integração,
que eu chamaria de cidadã e política dos habitantes dos países conquistados por
Roma. Refiro-me ao édito do imperador Caracalla, no século três, que estende a
cidadania romana a todos os habitantes do império. A partir desse momento, o
império romano não é mais tão somente dos povos da Itália ou de Roma, mas também
dos espanhóis, dos africanos do norte — como santo Agostinho, que era um bérbere
—, que assim se tornaram cidadãos romanos de pleno direito. É incrível que,
enquanto observamos ainda nos dias de hoje a tendência de dominação de uma
etnia sobre outras, no império romano tenha havido uma tendência absolutamente não-racial,
não-racista. Existiram imperadores que não eram romanos, e nem mesmo italianos.
Nessas condições,
constituiu-se de certa forma a unidade das diferenças; as tolerâncias religiosas
relativas à Antigüidade pagã. Deuses estrangeiros foram adotados pelos romanos:
Osíris o deus egípcio, como Orfeu, o deus grego que morre e renasce tal qual Osíris;
e por fim a integração da mensagem de Jesus que, uma vez concretizada, desintegrará
todas as outras com o seu monopólio da verdade.
De qualquer modo, quero
dizer que é real essa aceitação de outras crenças, pois aceitar os deuses dos
outros povos significa reconhecê-los. Eliminar os deuses dos outros povos, como
o fizeram por exemplo as conquistas espanhola e portuguesa, é negar de fato a existência
dos demais.
O terceiro aspecto da
latinidade é a integração do Cristianismo a partir de um momento extremamente
importante — o encontro do judaísmo de Jesus com a cultura grega, com a cultura
greco-latina. Essa extraordinária circunstância histórica aconteceu a Paulo, o patrono
desta cidade de São Paulo.
São Paulo, que na realidade
se chamava Saulo, era judeu, fariseu, anticristão, e perseguiu os primeiros
cristãos. Como sabem, ele viu um clarão, teve um êxtase — há um belo quadro de
Caravaggio numa igreja em Roma, na Piazza del Popolo no qual vemos Paulo caído
do cavalo, fulminado, tombado ao chão — ao ter uma revelação de Jesus, que lhe disse:
"Paulo, ou melhor, Saulo, porque me persegues?".
Como é do conhecimento de
todos, essa conversão de Saulo terá imensas consequências porque Paulo — Saulo
que se tornou Paulo — enunciará esta idéia básica: não há mais judeus e não há
mais gentios (a palavra "gentio" significando todos os outros povos,
todas as outras nações), existe uma só humanidade.
Esse pensamento e mensagem de
Jesus, potencialmente universalista, torna-se de fato universal; também tem
suas limitações, já que o cristianismo, como sabem, não aboliu a escravidão:
contribuiu para sua abolição.
Durante dois ou três
séculos, houve uma longa incubação da mensagem cristã em todo o império romano
e em todas as camadas da sociedade. Até que, com a conversão do imperador
Constantino, ela se torna não somente a religião de império, mas também a única
religião oficial. Nesse momento o cristianismo integra a romanidade, integrando
a latinidade que o havia integrado anteriormente.
Existe um duplo aspecto
nessa integração: a integração de uma mensagem de abertura, de amor, como a do
sermão da montanha, e outro aspecto: a intolerância de uma religião que se
declara a exclusiva detentora da verdade, que possui o monopólio da verdade e que
eliminará todas as outras de forma impiedosa.
Sabemos que essa tendência
do monoteísmo — aliás, quero lembrar-lhes que este é de origem egípcia, pois o
Faraó Akenaton foi o primeiro a adorar um deus único — tem aspectos que remetem
ao universal. É dirigida a todos os seres humanos e — em certos momentos
históricos, infelizmente demasiadamente numerosos — também tem aspectos extremamente
intolerantes e fanáticos. Como ocorreu nas incessantes guerras religiosas na
Europa, e com o Islã, também possuidor do mesmo caráter monopolista do
monoteísmo.
Percebem então que as
guerras religiosas são um monopólio ou uma característica específica do nosso
mundo ocidental e mediterrâneo, enquanto que na China e no Japão, por exemplo,
notamos a pluralidade das religiões. Uma mesma pessoa pode tanto professar o
culto dos ancestrais, o culto Xintoísta ou o culto Budista. Finalmente, essa
questão é não somente o grande êxito da latinidade em si, como de todas as
latinidades.
E
o que são as latinidades?
A latinidade surge a partir
da desintegração do império romano do Ocidente, isto é, com a chegada dos povos
bárbaros que integram uma parte da civilização e da língua latina. A língua
latina transforma-se — como acontece com todas as línguas na História —, dando origem
às línguas nacionais a partir das linguagens populares, já que os letrados continuam
usando o latim clássico, o da igreja. Contudo, essas línguas nacionais detêm um
cunho latino, como naturalmente têm o italiano, o espanhol, o português, o
francês, o romeno, etc.
Presenciamos então o
surgimento das latinidades, das línguas mestiças, evidentemente marcadas
durante a Idade Média pelo monopólio teológico da religião. Porém, no âmago da latinidade
ocorrerá o que denominamos de Renascimento, ou seja, a ressurreição da herança
grega, que já houvera permeado a latinidade do império romano. Essa ressurreição
tem início na Itália, e faz brotar algo que romperá o isolamento religioso, já que
representa o despontar de um pensamento não-religioso, de um pensamento laico, autônomo,
com ou sem Deus.
Essa corrente humanista
surge com muita força na Itália, com Pico Della Mirandola, Giordano Bruno — que
foi queimado em Roma, como sabemos —, com Leonardo da Vinci e, ao mesmo tempo,
com o advento da tecnologia, da ciência, da filosofia, etc.
Todavia, não existe somente
essa corrente italiana, que aliás se propagará pela Europa Ocidental e
influenciará principalmente Erasmo. Há uma outra corrente subterrânea, muito pouco
conhecida, que podemos denominar de corrente marrana: a dos convertidos. São os
judeus convertidos ao catolicismo pela força, por vontade própria, ou mesmo
pelo medo. Entre eles, há certamente alguns que acabaram esquecendo suas
origens e se tornaram católicos; outros permaneceram judeus, secreta e
clandestinamente, mantendo uma aparência católica concomitante. Porém, há outra
categoria, bastante minoritária, para quem o confronto, o choque entre as
religiões cristã e hebraica fez emergir algo novo, que transcenderá ambas.
Para dar-lhes um exemplo, o
mais belo é o pensamento de Espinosa, filósofo de origem judaica que naquele
tempo promoveu essa revolução mental própria do mundo moderno: eliminou a idéia
de um Deus exterior ao mundo que criou o universo tal qual um arquiteto. Elimina
essa idéia, que naquela época permanece muito arraigada em Descartes e em Newton,
situando a substância criadora no âmago da própria natureza.
A fórmula de Espinosa é:
"Deus, isto é, a natureza". Não podemos dizê-lo com mais ênfase. Esse
será o problema fundamental: o fato de que a criação, as idéias, a humanidade,
a evolução, originam-se do próprio mundo, que permanentemente se cria e recria.
Como já haviam percebido os
inquisidores, perseguidores dos marranos, o marranismo era uma fonte de
ceticismo e racionalidade. O exemplo mais claro é o de Michel de Montaigne cuja
hereditariedade é toda de origem marrana, isto é judia, possuidor desses
conceitos extraordinários para a sua época de guerras religiosas: o ceticismo e
a relatividade. Foi Montaigne o primeiro a dizer, quando da conquista da
América: "Chamamos de bárbaros os que pertencem a uma civilização distinta
da nossa". É a ressurreição da mensagem universal greco-latina em um mundo
pós-cristão. Lendo os ensaios de Montaigne, encontramos inúmeras referências
aos gregos, aos poetas gregos e latinos, porém nenhuma menção à Bíblia ou ao
Evangelho.
Podemos, portanto, dizer que
a filosofia e a ciência moderna tiveram origem no Renascimento, e que a partir
desse momento a latinidade não pôde mais se confundir com a cristandade, que se
estabelece de maneira mais ampla na Europa.
Sob a influência desse
pensamento — do Renascimento e do catolicismo — ocorre então na Europa o que
chamaríamos de dialógica, ou seja, uma relação ao mesmo tempo complementar e
antagonista entre a religião e a razão, entre a fé e a dúvida. Graças a ela podemos
reconhecer os limites da razão. Nela podemos, como demonstra Pascal — e isso é
muito importante e atual —, concluir que não existe nenhuma prova lógica nem
empírica da existência de Deus.
O que diz Pascal? Diz:
"E preciso apostar". Eis o grande tema da Aposta de Pascal: "Doravante,
devemos apostar". Seja em Deus ou, de acordo com nossos princípios, no bem,
no aprimoramento da humanidade, em um mundo melhor: devemos sempre apostar. Nunca
teremos certeza de êxito em nossas iniciativas, e eis aqui também essa sólida
idéia em um país de língua latina, a França, o que é de suma importância.
Não devemos esquecer que a
latinidade contém duplamente o helenismo — helenismo significando a herança grega,
já que os gregos são os helenos. Existe a herança grega encontrada na
latinidade do império romano, e a herança grega encontrada na Europa latina e
de maneira mais extensa na Europa moderna e, por fim, nos tempos modernos.
Deparamo-nos, portanto, com uma
nova aventura para a palavra latinidade. Da mesma forma como Roma conquistou de
forma bárbara o mundo antigo, a Europa conquistou a América, a América Latina
com a pavorosa destruição das civilizações Asteca e Inca, com uma subjugação
maciça. Nessa conquista bárbara, podemos observar a rapacidade dos conquistadores
e a imposição imperiosa da fé católica.
Concomitante e paralelamente
ao aspecto bárbaro, assistimos à introdução do português, do espanhol e de
novas latinidades. É nessas novas latinidades que se inicia o processo de
emancipação. Primeiramente a emancipação dos criollos, isto é, dos colonos
desses países ao se libertarem da coroa espanhola e portuguesa, e com essa
emancipação, a dos escravos. No Brasil do século 19, e que ainda não terminou...
que está muito longe de terminar, se pensarmos em países como o Peru, a Bolívia
e o próprio Brasil, com o problema dos indígenas da Amazônia e de outras
regiões.
Porém, assim mesmo contamos
com um processo que chamarei de civilizador: a mestiçagem, que contribui para a
integração e emancipação dentro de um novo complexo nacional e civilizador.
Realmente, embora o processo não esteja acabado, o exemplo mais marcante de uma
nação que criou uma civilização pela mestiçagem é sem dúvida o do Brasil,
exemplo de mestiçagem civilizadora e criadora.
Da mesma forma que na Europa
não existe mais, desde o Renascimento, uma latinidade, mas sim latinidades, na
América Latina também existem latinidades. E o termo latinidade torna-se um
componente lingüístico e cultural das civilizações mestiças, e não a essência dessas
civilizações. Não podemos reduzir todos estes países à simples latinidade, nem mesmo
a Argentina, que é o país mais europeu da América Latina. Em outras palavras, o
termo "latino" deve ser considerado um adjetivo e não um substantivo.
A latinidade é um traço que
caracteriza os povos, as nações da América Latina. Portanto, podemos dizer que
as latinidades se enriqueceram e continuarão a se enriquecer pela mestiçagem e
pelas diversidades no seio das unidades nacionais. Digo "irão se
enriquecer", porque nos encontramos num processo de despertar das
realidades e das culturas indígenas em países vizinhos, como o Peru, a Bolívia,
o Equador; o despertar das culturas Quéchua, Aymara. Assistimos a esse impulso
indígena muito forte, que deverá nos levar a uma nova ou a novas simbioses.
Tendo dito isto e nessas
novas condições, devemos examinar um novo aspecto, aquele próprio às
latinidades. Qual é ele? Primeiramente, quando examinamos os mapas geográficos,
percebemos que as latinidades são do Sul: o Sul da América — e naturalmente o
México, culturalmente parte integrante da América Latina, situado ao sul dos
Estados Unidos — e a Europa do sul: Portugal, Espanha, França, Itália,
Mediterrâneo, ele próprio localizado no sul da Europa. Portanto, existe essa
característica que é o Sul.
Hoje — e isso ocorre já faz
alguns anos —, não falamos mais da oposição Leste / Oeste. Após a queda do
império soviético, falamos do Norte e do Sul. Dizemos: o Norte é rico, o Sul é
pobre; o Norte é desenvolvido, o Sul é subdesenvolvido; o Norte é muito
técnico, industrial, o sul é principalmente rural, etc. De alguma forma, o
desenvolvimento e a riqueza significam Norte, o subdesenvolvimento e a pobreza
significam Sul. Porém, na realidade as coisas são muito mais complexas.
Por que? Porque o Norte
detém a hegemonia da técnica, da indústria, do capitalismo, que também é a
hegemonia do cálculo, do economicismo. Isso significa que o pensamento do Norte
tende sempre mais a se concentrar no cálculo, na economia — que por sua vez também
é cálculo —, e que todo o conteúdo humano não se resume ao mero cálculo.
O sofrimento não pode ser
calculado, assim como também o amor. Mesmo que se invente uma unidade de medida
para o amor — que chamaríamos de "Cupido" —, nunca faríamos uma
declaração de amor a uma jovem dizendo-lhe: "Sinto trezentos Cupidos por
você". Absolutamente não! Nada disso é quantificável. Mas a tendência do
Norte é reduzir tudo ao cálculo: reduzir a política à economia, ao crescimento,
à renda bruta. São meras noções estatísticas formais. Em outras palavras, é a
hegemonia da quantidade em detrimento da qualidade, das qualidades, tendo à
frente a qualidade de vida.
No entanto, o atraso
econômico do Sul comporta a salvaguarda dos valores humanos não redutíveis a
quantidades nem a moedas. São os valores de convívio, de hospitalidade, valores
de qualidade de vida. De resto, o Norte sente uma necessidade crescente desses valores.
Desde o século 19, o Norte busca o Sul: o Norte germânico, preso num mundo fechado,
apelava ao Mediterrâneo por meio de seus poetas. Em especial Goethe, que, referindo-se
à Itália. diz: "Conheces o país onde floresce a laranjeira?" Pode-se
encontrar esse apelo ao Mediterrâneo também em Hölderlin.
E, hoje, na Europa, vê-se
uma grande massa de veranistas alemães que acorrem para as praias do
Mediterrâneo, para as ilhas gregas, para o Sul, para o sol, que buscam algo que
não lhes é oferecido por sua cultura e sua civilização. Aliás, por que será que
a pizza difundiu-se pelo Norte e pelo mundo inteiro? Ela é um símbolo daquilo
que o Sul pode nos trazer; alguma coisa que não pode ser encontrada no chucrute
nem na salsicha.
Claro que não se deve
denegrir o Norte. É preciso dizer também que o Sul, durante muito tempo,
manteve certas desigualdades muito marcantes, principalmente a desigualdade do estatuto
da mulher. Na Espanha, ainda há trinta anos, uma mulher não podia entrar num bar
desacompanhada. A chegada das mulheres ao mundo do trabalho, ao mundo externo, é
recente. A defesa dos direitos da mulher começou incontestavelmente no Norte, e
por essa razão, é preciso não somente pregar, como eu faço, a resistência do
Sul, mas também a simbiose civilizadora entre o que há de importante e útil no
Norte com o que decididamente deve ser conservado no Sul.
Nessa simbiose, vemos o que
a latinidade pode trazer: uma fonte de universalidade e humanismo em que ela
mesma pode se transformar, acrescentando às reivindicações locais, particulares
e singulares, o elemento de universalidade indispensável.
Quando, num primeiro
momento, houve resistência à globalização econômica, e alguns tendiam a dizer
que deveríamos nos fechar em nossos países — chegou-se a ver essa posição —
houve também uma outra mensagem, trazida por José Bové, um homem da latinidade
e pastor francês, que disse: "O mundo não é uma mercadoria". Isso
quer dizer que podemos aceitar uma civilização global, porém com suas diversidades.
Não queremos nos fechar. É evidente que se deva respeitar os valores de cada
cultura. Nesse ponto, reaparece a questão do Sul.
Pensadores negros de
expressão francesa, como Aimé Césaire, martiniquês, ou como Léopold Sédar
Senghor, africano senegalês, são pensadores universais, sem abandonar o pensamento
da negritude, das qualidades do negro, do black is beautiful.
Para uma simbiose criativa,
para uma civilização planetária, o papel da latinidade é, a meu ver, o de ser a
porta-voz ao mesmo tempo do Sul e do universal. Mas para isso é preciso ultrapassar
a noção de desenvolvimento. Esta, na minha opinião, é uma noção totalmente subdesenvolvida,
por tratar-se de um conceito técnico e econômico, que o Norte ocidental quer
impor ao mundo propondo-se como modelo. Como se a técnica e o capital fossem
locomotivas capazes de puxar um trem com a democracia, o humanismo e o aperfeiçoamento
do destino humano. Como se a visão de que a pobreza se mede apenas pelas estatísticas
e pelo PIB, e não por traços humanos como a humilhação, como o fato de não
dispor de medicamentos ou de acesso às fontes de informação.
Em outras palavras, a medida
puramente quantitativa da pobreza é um erro. Podemos considerar paupérrimos os
camponeses que vivem numa economia de subsistência, numa policultura,
produzindo eles próprios o que necessitam para viver. Mas isso pode ser falso. Esses
mesmos camponeses, uma vez lançados nas habitações paupérrimas das periferias dos
grandes centros, não possuem nenhum recurso, vivendo de pequenos trabalhos, numa
verdadeira miséria.
Em suma, é preciso repensar
essa idéia de desenvolvimento. E a idéia de subdesenvolvimento, a meu ver, é
abjeta, porque nos faz ver os subdesenvolvidos como aqueles que nada conhecem a
não ser superstições. Na realidade, chamamos de subdesenvolvidos a povos que
possuem culturas milenares. Os índios da Amazônia, por exemplo, possuem
tesouros em conhecimentos medicinais sobre as plantas, sobre os animais. Esses
povos têm uma sabedoria e uma cultura oral de enorme riqueza. Na minha opinião,
é terrível pensar que tudo isso nada representa, e que devemos dar-lhes pura e simplesmente
o alfabeto e as idéias abstratas. É preciso ir além desse conceito de desenvolvimento.
Nós, europeus, que nos
consideramos desenvolvidos, percebemos que nossa civilização traz uma pobreza
moral, traz o isolamento no egocentrismo e toda uma série de problemas até
então inexistentes: a poluição urbana, a degradação da biosfera, o
desencadeamento das armas nucleares. Caminhamos, céleres, para um impasse. E
dizemos aos demais países para seguirem esse caminho, quando seria preciso
dizer que escolham um outro. Esse é o problema fundamental.
Por isso, creio que o papel
da latinidade poderia ser extremamente importante, podendo integrar o que há de
positivo na idéia de desenvolvimento, como o acesso aos medicamentos, por
exemplo. Vê-se hoje, ainda, as indústrias farmacêuticas impondo grandes
dificuldades para reconhecer a países como o Brasil o direito de fabricar seus medicamentos
genéricos. Logo, precisamos de uma política da civilização, da simbiose da civilização.
Precisamos de uma política da humanidade, que se dirija às necessidades mais prementes,
mais fundamentais para nossa humanidade, para o nosso planeta.
Sabemos que uma política de
civilização não pode limitar-se a uma luta militar contra o terrorismo, porque
a própria luta continua, desenvolve a violência e, desenvolve um outro terrorismo
— o terrorismo de Estado — de extrema brutalidade. A política da civilização deve
lutar contra a violência, e não pela simples repressão; mas sim por meio da
mudança das condições humilhantes e de dependência existentes no mundo atual.
Entretanto, como realizar
essa regeneração da humanidade, para salvá-la da catástrofe para a qual ela se
dirige? Muitas vezes eu disse que a nave espacial Terra era impulsionada por
quatro motores: o motor ciência, o motor técnica, o motor economia e o motor
lucro; mas disse também que não havia piloto, e que os passageiros da nave não se
entendem uns aos outros.
Nessas condições, o que
fazer? É um trabalho de fôlego. É preciso conscientização. Quando tivermos
consciência de que estamos caminhando em direção a algo de terrível, a reação
surgirá e, talvez, possamos salvar o mundo... Mas já à beira da catástrofe!
Vocês devem conhecer as palavras de Hölderlin, aqueles versos de seu poema à
Grécia, chamado Patmos, no qual ele diz: "Onde há perigo / há também
salvação".
E penso que é a consciência
que pode fazer isso. Para entendermos o que pode acontecer, vou dar um exemplo
mais lógico. Acreditava-se que as células-matrizes — aquelas que, no embrião
humano, têm a capacidade de criar as células de todos os órgãos como o fígado,
o baço, o cérebro, etc. — têm a possibilidade universal, o que se chama em
linguagem biológica tutti potente. Acreditava-se que elas desaparecessem no
adulto, depois da criação dos órgãos com células especializadas.
Há dois anos, porém, uma
descoberta muito importante, feita durante as pesquisas sobre regeneração de
órgãos e culturas de embriões, mostrou que um ser adulto possui células-matrizes
em sua medula, em seu cérebro, em seu corpo. Essas células matrizes estão apenas
adormecidas. A questão a ser levantada pela medicina nos próximos anos é como despertá-las.
Já foram feitas experiências num camundongo com lesão cardíaca e, graças ao
despertar dessas células, foi possível reconstituir um coração normal.
Mas deixemos a metáfora e
voltemos a falar da humanidade. Cada ser humano, e não somente ele, mas cada
coletividade humana também possui em si potências regeneradoras que são como o
equivalente das células-matrizes. Elas ficam adormecidas enquanto estamos numa
sociedade especializada, burocratizada, que busca exclusivamente a quantidade e
o lucro.
Quando há uma crise,
contudo, as células-matrizes podem despertar. É o que Karl Marx chamava de
homem genérico. Ele se referia à capacidade de criação e regeneração presentes
no ser humano. Nós dispomos dessas capacidades. Elas estão adormecidas. E temos,
entre essas células-matrizes, as matrizes do humanismo greco-latino. Assim, as latinidades
podem estar na vanguarda dos esforços para salvar a humanidade do desastre para
o qual ela corre.
Muito obrigado.
Este texto corresponde à transcrição de palestra dada pelo autor na Mostra Sesc de Artes – Latinidades, em 29 de agosto de 2003, no SESC da Av. Paulista, São Paulo.
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