(Wilson Horvath)
Esta narrativa mítica veio à
mente após a leitura da hipótese levantada por Freud em sua obra Totem e Tabu, em que o autor cogita a
possibilidade de nos primórdios da humanidade, um bando de irmãos terem
assassinado e devorado o pai[1],
dando origem a sociedade totêmica[2].
E ouvindo à inspiração das Musas[3],
trouxemos essa narrativa para os dias atuais, em conformidade com as reflexões
de Morin sobre as problemáticas atuais. Segue a Narrativa:
Antes da existência dos
deuses, as trevas envolviam toda a terra habitada, nesse cenário foi se
formando, próximo ao clã, o bando dos irmãos, distante apenas dos olhos daquele
que os expulsara do lar. Justamente ele, o mais admirado, querido e respeitado
de toda a família, o modelo de homem da prole, havia despendido tamanha
violência... contra seus próprios filhos, obrigando-os, um a um, a escolher
entre a morte certeira ou ao exílio.
O bando somente se
constituiu e permaneceu unido, pois os irmãos tinham em comum algo muito mais
forte que os laços sanguíneos: o ódio pelo pai, esse nutrido pelo desejo de
matá-lo, e, em especial decorrente do redimensionamento e da inversão do imenso
amor que outrora sentiam pelo patriarca.
A guerra fora deflagrada, o
confronto era inevitável e assim se sucedeu: Seguindo o plano macabro,
desenhado por várias e intensas noites, os irmãos marcharam em busca do sangue
de seu algoz, munidos de facões e foices, armamentos desconhecidos até então,
construídos graças ao ardor da cólera corrente em suas veias e responsável pela
racionalização e objetivação das ferramentas que tornariam possível concretizar
as suas justas vinganças.
O macho-alfa, mal avistando
o grupo de forasteiros se aproximar, correu furiosamente em sua direção; no dia
em que ele banira seus descendentes de casa, seu semblante ainda expressava um
resto de compaixão, o que permitira, mesmo diante daquela tragédia, a
sobrevivência de seus filhos; no entanto, agora, ele só transmitia severidade e
animosidade.
O pai sabia que o grupo era
mais forte do que ele, todavia percebia medo em seus rostos; ele procurou
afugentá-los individualmente com gestos e grunhidos, mas a raiva contida não os
deixava retroceder. O bando permaneceu imóvel por bom tempo, nenhum deles tinha
coragem para desferir o primeiro golpe... De repente, mergulhados em um transe
coletivo, como em um estouro da boiada, os irmãos atacaram juntos e de uma só
vez mataram o seu progenitor, destroçando o seu corpo em inúmeros pedaços.
Após essa horrorosidade, ocorreu
outra pior, os irmãos lutaram entre si, disputando o posto paterno, por seis
longos e intermináveis dias e noites; alianças e grupos opostos eram
construídos e desfeitos no mesmo instante. No sétimo dia, diante dos cadáveres
espalhados pelo chão, os doze últimos membros do bando perceberam o erro que
cometeram ao matarem o pai e arrependidos do parricídio, selaram um pacto de
paz por meio de um banquete cerimonial, em que se alimentaram dos restos
mortais de seu velho progenitor.
O pai renasceu em cada um
dos filhos e se tornou mais poderoso do que antes e obrigou que os filhos
obedecessem as suas antigas leis e eles as cumpriram prontamente. Assim, por
quarenta meses, a matança dentro do bando findou-se; estabeleceu-se a
entreajuda entre os membros do clã; cada um dos irmãos se tornou responsável
pela sobrevivência do outro; eles não tomaram suas irmãs como esposas e foram
buscar suas mulheres em outros clãs, ora pacificamente trocavam suas irmãs por
outras, ora de forma violenta raptavam mulheres de outros grupos.
No entanto, nem mesmo a
memória viva do patriarca pode evitar que eles almejassem exclusivamente para si
o seu mais profundo e verdadeiro amor: a sua mãe, Gaia. Nenhum dos irmãos havia
compartilhado esse desejo antes, ele permanecera em segredo absoluto até aquele
momento, mas diante das circunstâncias, ele pode vir à tona.
As discussões e rivalidades
entre os membros do bando voltaram, eles não entraram em combate, naquela
ocasião, pois a memória paterna os impedia. Então, a fim de resolver esse
dilema, os irmãos pensaram, pensaram e usando exclusivamente a lógica racional
chegaram a uma conclusão: eles repartiriam também a mãe em pedaços; os filhos a
devorariam e, conforme ocorrera com o pai, ela renasceria e estaria presente em
cada um.
No entanto, nenhum dos
filhos ousou comê-la. E uma nova solução foi encontrada, eles a dilacerariam,
mas mantê-la-iam viva com o auxílio da técnica oriunda da ciência moderna. Gaia
foi então partida de forma violenta, mas com precisão cirúrgica, em quatro
partes iguais, tendo a metade de um dos bicos do seio em cada um dos
fragmentos. Os quatro irmãos maiores representando os quatro os elementos
primordiais, os pontos cardeais, as estações do ano, as fases da lua, tomaram
para si um pedaço do corpo materno; e dois a dois dos irmãos mais fracos se
uniram aos mais fortes.
A princípio, os irmãos que
receberam as porções deveriam garantir o igual acesso ao alimento manado do
seio maternal aos outros; todavia isso não aconteceu, o mais forte ficou com
quase todo leite. E para impedir que os outros dois irmãos se unissem contra
ele, entregou para o segundo irmão em escala de força uma pequeníssima parcela
da refeição sagrada e o incumbiu a vigiar o outro irmão, iludindo-o que aquele
queria tomar a parte que lhe coubera. O segundo irmão acreditou e tornou-se
capataz do primeiro irmão; e o terceiro o seu servo, recebendo apenas algumas
gotas diluídas em água no interior de uma mamadeira, semelhante àquela parte do
seio materno.
Para que não houvesse novos
enfrentamentos motivados pela cobiça da parte pertencente ao outro irmão, os
quatro irmãos resolveram se separar. Cada qual foi juntamente com os outros
dois irmãos para um canto longínquo do planeta e formaram os quatro reinos, a
saber: África, América, Eurásia, Oceania e deram origem aos quatro povos que
habitam o planeta, cada qual com uma cor específica de pele: amarela, branca, negra
e vermelha. O fato de morderem em diferentes partes do bico do seio fez com que
suas línguas modificassem dando origem a idiomas incompreensíveis uns aos
outros.
Contudo, mesmo separados, a
inveja e o desejo de possuir a parte do outro nunca cessou e por causa dela
originaram infinitas guerras durante o tempo, de um reino contra outro, ou no
interior de um mesmo reino. O mesmo pai comum aos quatro irmãos ganhou com o
passar do tempo nomes e formas diferentes, irreconhecíveis para os outros
irmãos; em alguns locais, ele se tornou um deus, destruindo e subjugando os
povos que veneravam as forças da natureza como deuses; em outros locais, ele
permaneceu como uma ideia-força, sendo no Oeste chamado de capitalismo e no
Leste, de socialismo, esse último perdeu forças e se autodestruiu. Essa
diferenciação da memória do pai comum foi do mesmo modo responsável por outras
infinitas guerras ou intensificou o sentimento bélico dos que guerrilhariam
desejosos pela outra parte do seio matriarcal.
Os filhos não se tornaram
adultos, permaneceram como crianças gigantes e obrigavam incessantemente a mãe
a satisfazer todos os seus desejos e caprichos, tornando-a sua escrava. A mãe
exausta, sugada de suas forças e por ter o corpo destroçado foi adoecendo, mas
os filhos não percebiam suas dores, pois acreditavam que a repartição cirúrgica
ocorrera de forma bem sucedida.
Entretanto com o passar do
tempo, necessitando de se religar novamente, ela começou a entrar em estado de
putrefação, o cheiro foi se tornando insuportável e sua aparência terrível; os
filhos procuravam disfarçar com aromatizantes e maquiagem, mas com qualquer
vento e chuva, ela voltava revelar o seu estado necrótico. De seus seios não
saia mais leite, e sim, uma gosma e fumaça tóxica, que os filhos tragavam com mesmo
prazer de quando estava mamando, mas que, ao invés, de os alimentarem, estava
aos poucos os matando.
[1] Segundo Freud: “Recorrendo à
cerimônia da refeição totêmica, podemos dar uma resposta. Certo dia, os irmãos
expulsos se juntaram, abateram e devoraram o pai, assim terminando com a horda
primeva. Unidos, ousaram fazer o que não seria possível individualmente.
(Talvez um avanço cultural, o manejo de uma nova arma, tenha lhes dado um
sentimento de superioridade.) O fato de haverem também devorado o morto não
surpreende, tratando-se de canibais. Sem dúvida, o violento pai primevo era o
modelo temido e invejado de cada um dos irmãos. No ato de devorá-lo eles
realizaram a identificação como ele, e cada um apropriava-se de parte de sua
força [...]” (2012, v. XI, p. 216-7).
[2] O Totem foi provavelmente o mais
antigo sistema de leis da humanidade. Os membros da sociedade totêmica se
identificavam com um animal, o seu Totem, e viam esse animal como seu
antepassado comum. As proibições eram basicamente duas: Não matar o animal
totêmico e não tomar para si mulheres pertencentes ao mesmo totem.
[3] Na mitologia grega, as Musas (em
grego: Μοῦσαι) são entidades divinas responsáveis pela inspiração dos
cientistas e artistas, nas suas mais variadas formas de expressões.
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