Rubem Alves
Era uma vez uma águia que foi
criada num galinheiro. Cresceu pensando que era galinha. Era uma galinha
estranha (o que a fazia sofrer). Que tristeza quando se via refletida nos
espelhos das poças d’água tão diferente! O bico era grande demais, adunco, impróprio
para catar milho, como todas as outras faziam. Seus olhos tinham um ar feroz,
diferente do olhar amedrontado das galinhas, tão ao sabor do amor do galo.
Era muito grande em relação às
outras, era atlética. Com certeza sofria de alguma doença. E ela queria uma
coisa só: ser uma galinha comum, como todas as outras.
Fazia um esforço enorme para
isso. Treinava ciscar com bamboleio próprio. Andava meio agachada, para não se
destacar pela altura. Tomava lições de cacarejo.
O que mais queria: que seu cocô
tivesse o mesmo cheiro familiar e acolhedor do cocô das galinhas. O seu era
diferente, inconfundível. Todos sabiam onde ela tinha estado e riam.
Sua luta para ser igual a levava
a extremos de dedicação política. Participava de todas as causas. Quando havia
greve por rações de milho mais abundantes, ela estava sempre na frente. Fazia
discursos inflamados contra as péssimas condições de segurança do galinheiro,
pois a tela precisava ser arrumada, estava cheia de buracos (nunca lhe passava
pela cabeça aproveitar-se dos furos para fugir, porque o que ela queria não era
a liberdade, era ser igual às outras, mesmo dentro do galinheiro).
Pregava a necessidade de uma
revolução no galinheiro. Acabar com o dono que se apossava do trabalho das
galinhas. O galinheiro precisava de nova administração galinácea. (Acabar com o
galinheiro, derrubar as cercas, isso era coisa impensável. O que se desejava
era um galinheiro que fosse bom, protegido, onde ninguém pudesse entrar – muito
embora o reverso fosse “de onde ninguém pudesse sair”).
Aconteceu que, um dia, um
alpinista que se dirigia para o cume das montanhas passou por ali. Alpinistas
são pessoas que gostam de ser águias. Não podendo, fazem aquilo que chega mais
perto. Sobem a pés e mãos, até as alturas onde elas vivem e voam. E ficam lá,
olhando para baixo, imaginando que seria muito bom se fossem águias e pudessem
voar.
O alpinista viu a águia no
galinheiro e se assustou.
- O que você, águia, está fazendo
no meio das galinhas? Ele perguntou.
Ela pensou que estava sendo caçoada
e ficou brava.
- Não me goza. Águia é a
vovozinha. Sou galinha de corpo e alma, embora não pareça.
- Galinha coisa nenhuma, replicou
o alpinista. Você tem bico de águia, olhar de águia, rabo de águia, cocô de
águia. É ÁGUIA. Deveria estar voando... E apontou para minúsculos pontos no
céu, muito longe, águias que voam perto dos picos das montanhas.
- Deus me livre! Tenho vertigem
das alturas. Me dá tonteira. O máximo, para mim, é o segundo degrau do poleiro,
ela respondeu.
O alpinista percebeu que a discussão
não iria a lugar nenhum. Suspeitou que a águia até gostava de ser galinha.
Coisa que acontece freqüentemente. Voar é excitante, mas dá calafrios. O
galinheiro pode ser chato, mas é tranqüilo. A segurança atrai mais que a
liberdade.
Assim, fim de papo. Agarrou a
águia e enfiou dentro de um saco. E continuou sua marcha para o alto da
montanha.
Chegando lá, escolheu o abismo
mais fundo, abriu o saco e sacudiu a águia no vazio. Ela caiu. Aterrorizada,
debateu-se furiosamente procurando algo a que se agarrar. Mas não havia nada.
Só lhe sobravam as asas.
E foi então que algo novo
aconteceu. Do fundo de seu corpo galináceo, uma águia, há muito tempo
adormecida e esquecida, acordou, se apossou das asas e, de repente, ela voou.
“Lá de cima olhou o vale onde vivera.
Visto das alturas ele era muito mais bonito. Que pena que há tantos animais que
só podem ver os limites do galinheiro!”
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