P.: Com o aniquilamento das promessas
progressistas, cada um de nós pode ainda ter alguma esperança no futuro?
Edgar Morin –
Aquilo que foi aniquilado é a certeza do progresso histórico e a confiança no
futuro. A ilusão propriamente moderna, assegurando que "hoje é melhor do
que ontem e amanhã será melhor do que hoje", está morta. A incerteza
invadiu o futuro. Podemos certamente ter confiança num progresso, mas ele não
seria atribuído a uma "lei" da história, e sim a uma consciência e a
uma vontade humanas, e não seria irreversível. O socialismo, sob o modelo
soviético e, para alguns políticos ou tecnocratas, sob o modelo social-democrata,
deixou de ser a Solução para o futuro. Depois de 1989, o liberalismo econômico
representou por pouco tempo a nova Solução. Daí a tendência de uma grande parte
do mundo, sobretudo quando o presente é angustiante, de retornar às raízes, ao passado,
à esperança religiosa, de se fechar na comunidade étnica ou nacional. Existe
entre nós uma tendência de planejar mais o "dia-a-dia", de tentar
viver o presente. Desse modo, assistimos a uma resistência espontânea contra a
prosa do cotidiano, contra a banalização da vida. Evadimo-nos nas férias, nas
viagens exóticas, nos fins de semana, nas saídas. A adolescência,
principalmente, esforça-se por resistir à prosa do mundo adulto, sob a forma da
aventura, do "espetacular", dos êxtases provenientes das drogas ilegais
ou legais (álcool). Essas não são obrigatoriamente as diversões no sentido pascaliano.
São as tentativas de resistir à ofensiva da prosa generalizada própria da nossa
civilização, de subtrair-se à quantificação de todas as coisas e à mecanização
das condições de vida. Aos poucos, por todos os lados, a qualidade começa a
resistir à quantidade.
P.: Como o senhor definiria, setenta anos
depois do ensaio de Freud do mesmo nome, nosso "mal-estar na
civilização"?
Morin -
Sigmund Freud, no ensaio ao qual o senhor faz referência, atribuía o mal-estar
da civilização à hiper-repressão de uma sociedade policiada. As pulsões
agressivas reprimidas estão escondidas em profundidade, fechando-se antes de
subir novamente à superfície no momento de crise. Na visão freudiana, a civilização
é somente uma crosta superficial sobre o fundo da barbárie. Quanto mais ela
aparece harmoniosa e ordenada, tanto mais ela abriga aquilo que se situa num nível
mais profundo, as tensões exasperadas, as ameaças de implosão nervosa. O interesse
de Mal-estar na civilização reside no fato que, além dos seus aspectos
teóricos, ele documenta, três anos antes da ascensão de Hitler ao poder, o lado
oculto do crescimento dos perigos, o avanço em direção ao abismo de um
continente inteiro. Reler Freud, hoje, é tomar consciência da distância que nos
separa dele. Existe um novo mal-estar, que se situa além daquele da repressão
dos instintos, e que se deve aos sucessos da nossa civilização. O
desenvolvimento técnico e material produziu um subdesenvolvimento psíquico e
moral, o bem-estar produziu o mal-estar, sem suprimir as zonas de anomia e de
miséria. Qualquer indivíduo traz consigo uma propensão egocêntrica e uma
propensão comunitária. Nossa civilização desintegra as comunidades concretas,
favorece não somente o individualismo,o que é uma virtude, mas também seus
excessos no egocentrismo e hedonismo.
P.: Muita ordem civilizada mata a ordem
civilizada?
Morin - Os
progressos do individualismo permitem a autonomia e a responsabilidade pessoal.
Em contrapartida, eles provocam a desintegração das solidariedades tradicionais,
familiares, locais e profissionais. Somente as solidariedades anônimas
desenvolveram-se, tais como o Seguro-saúde, o Seguro Social...
P.: Essas solidariedades impessoais
entregam os indivíduos ao Estado, ao "ogro filantrópico", segundo a
expressão de Octavio Paz?
Morin - Com
efeito, esse sistema de solidariedade institucionalizada está ligado à desintegração
das solidariedades concretas e ao crescimento das solidões individuais.
P.: O estresse ocupa um lugar de destaque
na sua reflexão, como estado ao qual está condenado um indivíduo a partir do
momento em que suas relações com o exterior estão reduzidas ao mínimo
afetivo...
Morin - A
França apresenta um inquietante paradoxo. … o país do viver bem, mas é também
aquele que tem recorrido mais freqüentemente aos tranqüilizantes. Muitos males
psicossomáticos, depressões, fadigas têm uma determinação ou subdeterminação
sociológica ou civilizacional. A dificuldade em estabelecer uma relação autêntica
durável com o outro e a inserção numa comunidade de destino evidencia um
problema de civilização.
P.: Um dos elementos do mal-estar na
civilização não reside no fato de que o antagonismo ou o diferente não é aí
mais tolerado, e que ele é traduzido novamente, automaticamente, em termos do
ódio?
Morin - Existe
um enfraquecimento do superego cívico no espírito de bem dos indivíduos. No
máximo, quando ocorre a desintegração do tecido social, a sociedade aparece
como a inimiga, e o outro se torna um inimigo potencial. No mínimo, a
degradação da relação com o outro se traduz pela incivilidade. É preciso saber
que a sociedade "funciona" com a civilidade. O desaparecimento da cortesia
torna difícil o diálogo, a compreensão do outro. Ele favorece choques,
grosserias, insolências e, finalmente, as violências. O desaparecimento da
saúde, dos signos tradicionais de polidez traduz uma degradação das relações
humanas.
P.: Com essa critica da cultura moderna, o
senhor não está fazendo importantes concessões à crítica tradicionalista da
modernidade?
Morin - Sem
dúvida, mas eu lhe recordaria que esta crítica está presente em Marx, quando
ele afirmava que o capitalismo anônimo destruía as relações de pessoa a pessoa.
É preciso notar efetivamente o papel de mercantilização generalizada, ou seja,
da diminuição dos atos gratuitos e do crescimento dos desejos materiais. Ocorre
também as necessidades da alma humana na compreensão, no amor e na amizade que
estão mal satisfeitas. A crise da civilização é invisível porque vemos somente uma
miríade de crises individuais, de problemas separados uns dos outros. Eu a vejo
de modo profundo. Marx dizia que a história progride pelo lado errado.
Poderíamos hoje interrogar sobre a pertinência do termo "progresso". A
idolatria da modernidade impediu-nos de avistar o rosto escondido do progresso,
sua face obscura. Ela impede de ver que o progresso técnico, científico,
econômico, não é a locomotiva do progresso humano.
P.: Podemos distinguir duas tendências da
aspiração utópica: a utopia da vontade de poder e a utopia da moderação e da
autolimitação?
Morin - A
modernidade européia foi animada por uma utopia que prometia ao homem um aumento
ilimitado de seu poder. Sob essa ótica, o apelo à moderação é realista, não utópico,
do mesmo modo que o apelo da fragilidade e da finitude humana. A quimera da dominação
total do mundo, encorajada pelos prodigiosos desenvolvimentos das ciências e das
técnicas, chocam-se atualmente com a tomada de consciência de nossa dependência
no que concerne à biosfera e à tomada de consciência dos poderes destruidores
da tecnocência. Do meu ponto de vista, há dois tipos de utopia. A
"boa", que propõe um progresso técnica ou materialmente possível, mas
atualmente impossível. A "má", que é uma utopia de harmonia e
perfeição que acredita poder se impor pela força. Para mim, a supressão das guerras
entre nações ou a solução do problema da fome no mundo têm soluções, mas elas são
ainda impossíveis. Minha utopia pessoal é aquela da Terra-Pátria, porque todos
os seres humanos vivem um destino comum em face das ameaças ecológicas e
nucleares, em face domercado mundial e da comunidade de destino, aquela que
define uma pátria, segundo a concepção de Otto Bauer. A má utopia é a utopia da
perfeição, do aniquilamento dos conflitos, da evacuação do negativo. É a utopia
que a União Soviética pretendeu realizar, quando, de fato, ela criou uma
sociedade totalitária.
P.: A necessidade de escapar às malhas da
realidade alimenta, sobre o terreno das lutas sociais, a reivindicação de uma
"outra política". Esse fato representa o sinal de um retorno pela
pequena porta da utopia?
Morin - De
fato, existe uma contestação que se amplifica ou se radicaliza, existe uma crítica
da mundialização econômica neoliberal, mas não existe ainda uma alternativa. Mesmo
com a maior das greves em 1955, mesmo na recente campanha eleitoral, os trotskistas
não propuseram como alternativa a Revolução socialista. O modelo econômico soviético
está morto. Existe uma justa aspiração por uma outra política, por uma outra via,
e eu próprio proponho uma "política de civilização", mas nenhum partido
prospectou ainda este novo caminho.
P.: Mas certas formações qualificadas de
populistas reivindicam igualmente uma "outra política".
Morin -
Podemos considerar como utopia o mito da Frente Nacional, de uma identidade francesa
purificada? Trata-se, antes de tudo, de um desconhecimento da realidade francesa,
feita da francização multissecular das etnias heterogêneas, e que se fundamenta
num espírito comum, numa vontade comum, e não em um sangue idêntico. Não
podemos nos esquecer de que a origem da identidade francesa é mestiça, visto
ser ela trans-galo-romana.
P.: A revolta ou o protesto não esgota,
portanto, o sentido de retorno ao polético?
Morin - É uma
banalidade sem sentido afirmar que é preciso modernizar a política francesa. De
fato, a urgência é muito mais ambiciosa, se eu ouso dizer, de pós-modernizá-la,
de avistar um além da modernidade. Estou convencido de que podemos continuar na
chamada via do desenvolvimento com a obsessão da eficacidade – rentabilidade
econômica e primazia da técnica. Devemos compreender que a qualidade deve
primar sobre a quantidade, que aquilo que é propriamente humano foge ao cálculo.
Foi essa a revanche de Ivan Illich, profeta da convivialidade. A cada ano
nossas sociedades hipertecnológicas, voltadas à rentabilidade e ao lucro
desenfreados, são expostas às catástrofes, como revelou a crise da vaca louca.
P.: Não é necessário que se diga uma coisa
e seu contrário, ou seja, ao mesmo tempo recusar o realismo sem frase e
resistir à tentação do imaginário?
Morin - É
preciso fazer, simultaneamente,a crítica ao realismo e a crítica à utopia. É
conveniente ser capaz de ter um pensamento complexo. Bernard Grethuysen dizia:
"Ser realista, que utopia!". Após a derrota francesa de 1940, e até o
outono de 1941, ser vichyste era ser realista, ou seja, aceitar como fatalidade
a dominação nazista sobre a Europa. Esse realismo tornou-se irrealista em dois
anos. É preciso, enfim, conceber para o futuro a possibilidade de uma nova
criação, de uma metamorfose, inconcebível antes que ela se produza. Quando um
sistema é incapaz de resolver com seus próprios meios seus problemas fundamentais,
ou ele se rompe, ou consegue fazer surgir a partir de si mesmo um "metassistema",
mais complexo, capaz de resolver os problemas que lhe são colocados.
P.: Mediante os perigos que nos confrontam,
estaríamos nós diante da alternativa "associação ou barbárie"?
Morin - As
sociedades atuais são incapazes de tratar os problemas planetários fundamentais.
É vital que elas se associem, daí a alternativa associação ou barbárie. Mas essa
associação deveria fazer emergir uma sociedade de um tipo novo, uma sociedade-mundo.
P.: Seus desejos de um "new deal
civilizacional", mais do que um tipo neorealista, passa por uma reforma
intelectual e moral?
Morin - Não
podemos equacionar os problemas globais do planeta enquanto estivermos num
conhecimento fragmentado em disciplinas fechadas; é preciso uma reforma do
pensamento que nos permitisse conceber os problemas fundamentais e os problemas
globais que nosso conhecimento atual reduz a migalhas. Não podemos pensar nem
de maneira local nem global. Eles se interpelam sem parar, interpenetram e se confundem.
Daí a necessidade de um pensamento complexo.
P.: O apelo heideggeriano de habitar
poeticamente a terra não pode dar uma forma concreta à sua utopia da
complexidade?
Morin -
Vivemos prosaicamente quando fazemos aquilo que somos obrigados a fazer para sobreviver.
Viver verdadeiramente é viver na intensidade da paixão, do amor, do jogo, da comunidade.
Acredito que é preciso substituir a idéia de desenvolvimento, que se confia ao
progresso tecno-econômico para assegurar o progresso humano, pela idéia de uma
política de civilização, que nos conduz a reformar nossa própria civilização e
a reconsiderar os princípios que a comandam e que, na minha opinião,
conduzem-nos à esclerose, à regressão, em direção à catástrofe. De resto, não
se manifestam mais em nossa civilização nem a esperança nem a solidariedade. A
idéia de que um outro caminho é possível suscitaria uma ressurreição da
esperança. Não mais a antiga esperança, fundada sobre a certeza do progresso,
mas uma esperança consciente da aposta que ele comporta.
Entrevista de Edgar Morin a Alexis Lacroix publicada originalmente no jornal Le Figaro, em 21 de julho de 2002.
Traduzido por Nurimar Maria Falci (e-mail: nurimarfalci@terra.com.br), revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho (e-mail: edgardcarvalho@terra.com.br).
MARGEM, SÃO
PAULO, No 16, P. 177-182, DEZ. 2002
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