ESPECIAL PARA O "LE
MONDE"
O progresso científico
permitiu a produção e a proliferação de armas de destruição em massa
-nucleares, químicas e biológicas. O progresso técnico e industrial provocou um
processo de deterioração da biosfera, e o círculo vicioso entre crescimento e degradação
ambiental se amplia. A globalização do mercado econômico, sem regulamentação
externa nem auto-regulamentação verdadeira, criou novas ilhas de riqueza, mas
também zonas crescentes de miséria; ela provocou e vai continuar a provocar
crises sucessivas, e sua expansão se dá sob a ameaça de um caos para o qual ela
própria contribui em muito. Os avanços da ciência, da técnica, da indústria e
da economia que vão levar a nave Terra adiante a partir de agora não são
regulados nem pela política, nem pela ética. Assim, o que parecia dever
assegurar o progresso certeiro traz consigo possibilidades de progresso futuro,
é verdade, mas também gera e intensifica os perigos.
Os fenômenos acima citados
são acompanhados por diversas regressões bárbaras. As guerras se multiplicam no
planeta e, cada vez mais, são caracterizadas por seus componentes
étnico-religiosos. A consciência cívica perde espaço em toda parte, e violências
de diversos tipos corroem a sociedade. A criminalidade mafiosa tornou-se planetária.
A lei da vingança toma o lugar da lei da Justiça, arrogando-se o papel da verdadeira
justiça.
As concepções maniqueístas
dominam os espíritos, fazendo-se passar por racionalidade. Os loucos de Deus e
os loucos pelo ouro agem sem freios. Existe uma conexão entre as duas loucuras:
a globalização econômica favorece o financiamento do terrorismo, que busca
desferir um golpe mortal contra a mesma globalização. Nessa área, como em outras,
a barbárie odiosa vinda dos confins dos tempos históricos se soma à barbárie anônima
e gelada própria de nossa civilização.
As comunicações se
multiplicam no planeta, mas a falta de entendimento aumenta. As sociedades são
cada vez mais interdependentes, mas estão cada vez mais dispostas a se destruir
mutuamente.
A ocidentalização toma conta
do mundo, mas provoca reações de encerramento em torno de identidades étnicas,
religiosas e nacionais. As certezas irracionais voltam a provocar
desentendimentos, mas a racionalidade abstrata, calculadora,
""economística", administradora e tecnocrata é incapaz, também
ela, de compreender os problemas em suas dimensões humanas e planetárias. Os
espíritos abstratos enxergam a cegueira dos fanáticos, mas não sua própria
cegueira. As duas cegueiras, a da irracionalidade concreta e da racionalidade
abstrata, se unem para lançar uma sombra escura sobre o novo século nascente.
Já chamei a atenção, há
muito tempo, para o fato de que o Oriente Médio se encontra no centro de uma
zona sísmica planetária onde se confrontam as religiões entre elas, as religiões
e o espírito profano, o Oriente e o Ocidente, o Norte e o Sul, países pobres e países
ricos. O conflito israelo-palestino, no coração dessa zona sísmica, constitui,
ele próprio, uma espécie de câncer cuja metástase corre o risco de se espalhar
pelo planeta.
As intervenções maciças das
Forças Armadas israelenses em território palestino e os atentados suicidas em
território israelense intensificaram um ciclo vicioso infernal que já deixou de
ser localizado. De fato, a repressão mortífera israelense desencadeou uma onda
inusitada de sentimento antijudaico no mundo muçulmano, onda esta que retomou os
temas antigos do anti-semitismo cristão e do antijudaísmo nacionalista ocidental,
de tal modo que o ódio por Israel se generalizou, tornando-se ódio ao judeu. A
violência cega dos suicidas palestinos, somada aos atentados da Al Qaeda,
ampliou a onda de sentimento antiislâmico -não apenas em Israel, mas também no
Ocidente, não apenas entre os judeus da diáspora, mas mais amplamente, em meios
diversos, como mostra o livro de Oriana Fallaci contra o islã ("La Rage et l'Orgueil" -a raiva e a
presunção), religião que é identificada com sua vertente fanática e regressiva.
O agravamento da situação
pode criar novos focos de conflito no interior dos países. Com sua numerosa
população de origem muçulmana e sua significativa população de origem judaica,
a França vem conseguindo, até agora, evitar que a violência dos jovens de
origem norte-africana e a exasperação pró-israelense levem a um confronto. Um
novo conflito no Oriente Médio provocaria a intensificação do ódio e da
violência, e a França laica se transformaria em palco de uma guerra
étnico-religiosa entre dois setores de sua população. Além disso, embora sua
criação não tenha ligação com o conflito israelo-palestino, a Al Qaeda, após os
atentados no Quênia, adotou a causa palestina para justificar seus massacres. O
círculo vicioso israelo-palestino se globaliza, o círculo vicioso Ocidente-islã
se agrava. A guerra do Iraque vai eliminar um tirano horrível, mas intensificará
os conflitos, os ódios, as revoltas, as repressões e os terrores e corre o risco
de converter uma vitória da democracia em vitória do Ocidente sobre o islã. As ondas
de antijudaísmo e de antiislamismo ficarão mais fortes, e o maniqueísmo se instalará,
num choque entre barbáries que será conhecido como "conflito de civilizações".
O líder da maior potência
ocidental virou aprendiz de feiticeiro. Em sua luta míope contra os efeitos do
terrorismo, ele fortalece as causas do mesmo; em sua oposição à regulamentação
econômica e ambiental, favorece a degradação da biosfera.
A barbárie do século 20
desencadeou sobre múltiplas regiões da humanidade os flagelos de duas guerras
mundiais e dois supertotalitarismos. As características bárbaras do século 20
continuam presentes no século 21, mas a barbárie do século 21, cujo prelúdio já
foi visto em Hiroshima, encerra em seu bojo a autodestruição potencial da humanidade.
A barbárie do século 20 gerou os terrores policiais, políticos e dos campos de
concentração. A barbárie do século 21 traz em seu bojo, desde 11 de setembro de
2001, um potencial de terror planetário ilimitado.
Os países não podem resistir
à barbárie planetária de outro modo senão se fechando sobre eles mesmos de
forma regressiva, o que reforça essa barbárie. A Europa é incapaz de afirmar-se
politicamente, incapaz de abrir-se com sua reorganização, incapaz de recordar
que a Turquia é uma grande potência européia desde o século 16 e que o Império
Otomano contribuiu para a civilização européia (ela esquece que é o
cristianismo que, no passado, se mostrou intolerante em relação a qualquer
outra religião, enquanto o islã otomano e da Andaluzia aceitava o cristianismo
e o judaísmo). No plano mundial, as instâncias de conscientização são
dispersas. A internacional cidadã em formação é embrionária. Ainda não surgiu
uma sociedade civil planetária. A consciência de uma comunidade de destino
terrestre permanece disseminada. Ainda não foi formulada nenhuma alternativa
real.
A idéia de desenvolvimento,
mesmo o desenvolvimento dito "sustentável", toma como modelo nossa
civilização em crise, a mesma civilização que seria preciso reformar. Ela impede
o mundo de encontrar formas de evolução outras que as inspiradas no Ocidente. Ela
impede o surgimento de uma simbiose das civilizações, simbiose que pudesse
integrar o melhor do Ocidente (os direitos humanos, os direitos da mulher, as
idéias democráticas), mas excluir o pior. O próprio desenvolvimento é movido
pelas forças descontroladas que conduzem à catástrofe.
Em seu livro "Pour un Catastrophisme Eclairé"
(por um catastrofismo esclarecido), Jean-Pierre Dupuy propõe que se reconheça a
inevitabilidade da catástrofe, para que possamos evitá-la. Mas, além do fato de
que o sentimento da inevitabilidade pode levar à passividade, Dupuy faz uma
identificação excessiva entre provável e inevitável. O provável é aquilo que, a
um observador num tempo e num lugar dados, dispondo das informações mais
confiáveis, parece ser o processo futuro. E, de fato, todos os processos atuais
conduzem à catástrofe. Mas o improvável nem por isso deixa de ser possível, e a
história passada já nos mostrou que o improvável pode tomar o lugar do provável,
como foi o caso no final de 1941 e início de 1942, quando a provável longa dominação
do império hitleriano sobre a Europa se tornou improvável, dando lugar a uma provável
vitória aliada. De fato, todas as grandes inovações da história romperam com as
probabilidades: foi o caso da mensagem de Jesus e Paulo, daquela de Muhammad,
do desenvolvimento do capitalismo e, mais tarde, do surgimento do socialismo.
Assim, a porta permanece
aberta ao improvável, mesmo que o crescimento mundial da barbárie torne isso
inconcebível neste momento.
Paradoxalmente, o caos em
que a humanidade corre o risco de mergulhar traz em seu bojo sua própria e
última oportunidade. Por quê? Para começar, porque a proximidade do perigo
favorece as instâncias de conscientização, que podem então multiplicar-se, ampliar-se
e fazer surgir uma grande política de salvação do mundo. E, sobretudo, pela seguinte
razão: quando um sistema é incapaz de resolver seus problemas vitais, ou ele se
desintegra, ou é capaz, dentro de sua própria desintegração, de
metamorfosear-se num metasistema mais rico, capaz de buscar soluções para esses
problemas. A humanidade se vê incapaz, neste momento, de resolver seus
problemas mais vitais, a começar pelo problema de sua sobrevivência. Ela é
tecnicamente capaz, mas politicamente incapaz de eliminar a fome no mundo. Essa
incapacidade chega ao auge, hoje, no paradoxo argentino, no qual a produção de
alimentos é cinco vezes superior às necessidades da população, e, ao mesmo
tempo, grande número de crianças sofre de desnutrição grave (25% delas, no caso
da Província de Tucumán). De fato, no mundo de hoje, é impossível realizar o
possível.
Aqui, torna-se útil a idéia
de feedback retroativo positivo. Essa noção, formulada por Norbert Wiener,
designa a ampliação e a aceleração descontroladas de uma tendência no interior
de um sistema. No mundo físico, um feedback positivo sempre leva esse sistema à
desintegração. No mundo humano, porém, como observou Magoroh Maruyama, o
feedback positivo, ao desintegrar estruturas petrificadas, pode suscitar o
surgimento de forças de transformação e regeneração. A metamorfose da lagarta
em borboleta nos oferece uma metáfora interessante: quando a lagarta entra no
casulo, ela opera a autodestruição de seu organismo de lagarta, e esse processo
é, ao mesmo tempo, de formação do organismo da borboleta, que será, ao mesmo
tempo, a mesma que a lagarta e a outra.
Essa é a metamorfose. A
metamorfose da borboleta é pré-organizada. A metamorfose das sociedades humanas
em uma sociedade mundial é aleatória, incerta e submetida aos perigos mortais
que, no entanto, são necessários a ela. Também a humanidade corre o risco de
naufragar no momento em que dá à luz seu futuro.
Entretanto, assim como nosso
organismo traz em seu bojo células tronco indiferenciadas e capazes, como as
células embrionárias, de criar todos os diversos órgãos de nosso corpo, também
a humanidade possui as qualidades genéricas que permitem criações novas; se é
verdade que essas qualidades se encontram adormecidas, inibidas sob o peso das
especializações e da rigidez de nossas sociedades, então as crises generalizadas
que as abalam e abalam o planeta podem suscitar a metamorfose que já se tornou
vital. É por essa razão que é preciso passar pela desesperança para encontrar a
esperança.
Edgar Morin, sociólogo
francês, é um dos pioneiros dos estudos de cultura e meios de comunicação de
massa. Autor de "Autocrítica" e "A Indústria Cultural", ele
foi diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França
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