Wilson Horvath
A religião esteve fortemente
presente em minha vida desde a mais tenra idade e me acompanha ao longo do
tempo, colaborando com minha formação humana, cristalizando alguns pontos de
minha personalidade e metamorfoseando outros. Em determinados momentos, ela me
impôs seus dogmas; entretanto ela também me obrigou o questionamento, a
reflexão, a negação de suas verdades.
A máxima medieval: “credo quia absurdum est” (Creio porque é
absurdo) nunca soou bem aos meus ouvidos; ao contrário fui impelido a buscar
conhecer o infinito, que na linguagem religiosa, o chamamos de Deus, mesmo
tendo em mente que Ele continuará para sempre a ser um mistério aos nossos
olhos, à nossa compreensão humana.
Não caminhei de forma passiva no
universo religioso, mas ativamente, como um verdadeiro amante. E igualmente a
todos aqueles que amam, experimentei os mais profundos êxtases, aconchego,
proteção e sofrimento, desilusão, abandono, raiva.
E nessa relação de amor e de
ódio, de colaboração e de enfrentamento, a religião marcou a minha identidade,
condicionou o meu ser, mas por mim ela foi redesenhada à “minha imagem e
semelhança”. Assim, o Deus eterno, incondicionado é cultuado dentro dos limites
da minha existência, finitude, condicionamento. Sua imagem transcende ou
retrocede de acordo com as transformações de minha percepção; todavia a
incompletude de meu ser se abre ao Infinito e por ele é tracionado,
modificando-me e alterando a minha forma de compreensão do real e, nesse
sentido, de minha religiosidade.
Religião e eu travamos uma
luta aos moldes daquela combatida por Jacó, figura bíblica, (Gênesis 32, 22 –
32), em que o patriarca luta com Deus a noite toda e O vence; mas diante da
derrota, Deus permanece inalterado, enquanto o vencedor é ferido na coxa e se
torna manco. E ao amanhecer, Deus o abençoa e muda o seu nome de Jacó para
Israel.
O nome na Bíblia está ligado à
personalidade da pessoa e revela os seus traços subjetivos, temperamento
emocional, características físicas, sua posição em relação ao projeto divino
para a humanidade. Por exemplo: o nome Jacó quer dizer: “aquele que vem no
calcanhar”, alusão ao filho caçula, aquele que veio por último; e Israel
significa: "o que luta com Deus" ou “Deus luta” ou “Deus lutou”.
A mudança de nome simboliza a
metamorfose operacionalizada na identidade da pessoa, que embora seja o mesmo
indivíduo, é um sujeito bem diferente daquele que o era. No caso do patriarca
bíblico, ele deixou de ser o filho mais novo, aquele com menor direito à
herança paterna para se tornar o grande pai do povo judeu, que nomeou o Estado
judaico e marcou a identidade de todo o seu povo.
Para compreendermos o processo
de transformação promovido a partir da relação, da luta, que estabeleci com a
religião, adentremos em minhas lembranças de infância e tentemos localizar como
foi se solidificando a imagem de Deus, essa que me impactou e me influenciou ao
longo da vida, mesmo estando ela em constante mudança.
Nasci e cresci no interior baiano,
em um ambiente marcado pelo misticismo católico, que sincretizava elementos da
fé popular brasileira, trazidos das religiões indígena e africana, esses
camuflados, com o cristianismo romano.
Minha avó materna, certa vez,
contou que desde o meu nascimento, ela rezava comigo no colo e a partir do
momento que comecei a balbuciar, ela insistia em fazer-me repetir as orações
católicas. Assim, ainda muito pequenino, eu já conhecia de cor as principais
ladainhas e as tagarelava aos quatro ventos. Tenho vagas lembranças de rezá-las
para os vizinhos, parentes, amigos e, após proclamá-las, de receber elogios,
que me faziam sentir uma espécie de “anjinho” de carne e osso.
Um pouco mais crescido, por
volta dos sete anos, minha mãe levou-me para ser coroinha; ela mandou fazer uma
batina (túnica), semelhante à roupa que o padre usava na celebração; contratou
um fotografo para tirar algumas fotos de mim trajando aquela vestimenta. Então,
praticamente todos os dias da semana, eu estava presente na missa, auxiliando o
padre ou fazendo figuração.
Os elogios aumentaram,
recebia-os inclusive de minhas professoras e da diretora da escola, que
parabenizavam-me junto a minha mãe ou em sala de aula na presença de meus
colegas de turma e me destacavam como um exemplo de criança e aluno a ser
seguido. Diante desses fatos, defini qual seria o meu futuro precocemente:
seria padre. Minha pueril decisão foi amplamente apoiada e admirada por todos
que me cercavam: família, padre, educadores, amigos.
No entanto, uma pessoa não me
apoiou e desaprovou por inteiro meus planos futuros, como também era de seu
desagrado minha vivência na Igreja, meu pai. Para ele, homem não deveria usar
“saia”, insinuação às vestimentas clericais, muito menos ser celibatário, mas
ter uma esposa, constituir família, ter filhos.
Ele não era uma figura de
referência direta para mim, mas indireta, ou seja, era um exemplo a não ser
seguido; seu modelo de homem me serviu para estabelecer aquilo que eu não
deveria ser, alguém que seria diametralmente oposto a ele.
Ele trazia em seu ser as
marcas, os traumas consequentes da Segunda Guerra Mundial, pois meu avô paterno
serviu no exército alemão e após o término da conflagração fugiu e entrou de
forma clandestina no Brasil. Nos relatos de meu pai, meu avô havia sido muito
violento com ele, tratando-o como um recruta ou um inimigo em combate.
Infelizmente, meu pai não
conseguiu trabalhar internamente a violência sofrida e a despejava contra mim.
Quase todos os dias, eu sofria agressões e em alguns dias era vitimado mais de
uma vez; apanhava por todos os motivos ou sem nenhuma justificativa.
Ele com minha mãe tinha uma
relação muito conturbada, com várias brigas. Nas discussões ou falar a respeito
dele, ela o chamava de “o coisa”, uma expressão para se referir ao demônio, mas
que ao seu entender poderia ser dita, pois não estaria invocando o diabo. Além
disso, ele também era desonesto com as pessoas, em seus negócios e odiava os
pobres.
Não precisei ler Dante
Alighieri, para formular a minha concepção de Inferno. O demônio era muito
ruim, fazia muitas maldades, agredias as pessoas fisicamente por meio de
chibatadas e psicologicamente por meio de xingos, humilhações, menosprezos.
Concomitantemente, criei minha
concepção de céu de minha infância. No altar da igreja que eu frequentava havia
uma pintura de Deus, que sustenta uma cruz de madeira, com uma estátua de Jesus
crucificado; o afresco apresentava um homem senil, de cabelos e barba
esbranquiçados, mas forte e robusto. Por muito tempo, achei o Deus ali
desenhado era o meu avô materno.
Meu avô era um camponês, alto,
forte, de estrutura corpórea esculturada pelo trabalho árduo da vida no campo.
Ele era muito honesto, se gabava pelo fato de nunca ter dado um prejuízo em
alguém; gostava de ajudar as pessoas, em especial os mais necessitados. Ele era
muito devoto de São Sebastião – Mártir católico, morto à flechada, amarado em
uma árvore – e de Nossa Senhora Aparecida, de quem gostava de contar os três
milagres dados nos momentos de sua aparição: peixes para o sustento dos
pescadores, libertação das correntes que aprisionavam os escravos e queda do
capataz do cavalo, esse que corria para capturar os escravos fugitivos.
Meu avô era muito bom comigo,
dizia coisas boas para me agradar; gostava de me apresentar aos seus amigos e
falava que eu seria padre; me levava à escola e à igreja; comprava lanche na
quitanda; fazia doce de leite, de amendoim, de goiaba, queijo.
Para completar a trilogia
dantesca, em minha casa havia um quadro de Nossa Senhora do Carmo com o menino
Jesus no colo e com vários anjos aos seus pés. Ela estava no purgatório,
tirando as almas daquele sofrimento e as conduzindo ao paraíso. Para mim, a
santa representada era a minha mãe.
Minha irmã tinha sido anjinha,
participando da celebração de coroação de Nossa Senhora Aparecida, algumas
vezes. Nós dois quando crianças procurávamos naquele quadro, qual dos anjos era
mais parecido com ela. E por fim há um outro personagem sagrado, que fez parte
de minha infância, Santa Bárbara, protetora contra tempestades, raios e trovões,
essa a identifiquei com minha avó materna.
Nesse trama familiar se deu
minha primeira infância. Durante o dia, vivia como um “padrezinho” e à noite,
rezava até adormecer por medo de fantasmas e do demônio. E, assim foi até a
puberdade, momento em que resolvi deixar de lado a vocação clerical, devido aos
encantos das mulheres e por uns quatro ou cinco anos, namorei algumas meninas.
Porém, por volta dos dezesseis
anos, fiz um encontro de jovens de três dias e noites em um sítio isolado da
cidade. O padre, que pregou no encontro, apresentou Jesus de uma forma que eu
nunca tinha ouvido falar. Em sua pregação, Jesus viveu em prol dos pobres,
ajudando-os e combatendo aqueles que os oprimia. Jesus também apresentava uma
nova imagem de Deus, essa não era aquela que castiga e exigia sangue, conforme
o relato bíblico do sacrifício de Isaac por seu pai Abraão a pedido de Deus
(Gênesis 22, 1 – 14), mas o Pai Celestial era o ÁBBA (אבא), que quer dizer:
Pai, Papaizinho, nome carinhoso usado para se referir ao genitor ou ao avô. No
último dia de encontro, o padre disse que a missão da Igreja era dar
continuidade a missão de Jesus, ou seja, estar a serviço dos pobres e anunciar
ao mundo Deus como ABBA. E convidou os jovens presentes a serem futuros padres,
a fim de darem suas vidas para concretizar o legado deixado por Cristo.
Alguns amigos e eu saímos
desse encontro muito empolgados com a ideia de sermos sacerdotes e esse foi o
assunto de nossas conversas por meses. Com o passar do tempo, meus amigos
desistiram de serem padres, mas permaneci com esse desejo e participei de
outros encontros, com o objetivo de me aprofundar naquela vocação.
Havia apenas um detalhe que me
punha em dúvida em relação à minha vocação sacerdotal: as mulheres. E a
indefinição não adivinha de conceitos entre o certo ou errado, conforme meu pai
apresentava em minha infância, mas desejos internos, impulsos fortíssimos.
Na indecisão entre a vida
clerical e leiga caminhei por dois anos. E após concluir o Ensino Médio,
prestei dois vestibulares, um para psicologia em uma instituição pública e outro
para filosofia no intuito de ingressar na vida religiosa; fui aprovado nos dois
e optei pela primeira. Porém, em uma noite, o padre, que pregou o retiro, foi à
minha casa, conversamos até altas horas da noite e no dia seguinte, minhas
malas estavam prontas para acompanhá-lo ao seminário. E lá permaneci por mais
de uma década.
Minha estada no seminário não
foi tão cruel como a de Bernardo Guimarães, essa imortalizada de forma
romancista em sua obra O Seminarista.
Tive boas e más experiências e encontrei todos os tipos de pessoas, algumas extremamente
boas e outras capazes dos atos mais insanos.
Minha experiência de vida no
interior da Igreja se deu em um ambiente que respirava os ares da Teologia da
Libertação e do humanismo, circulando livremente entre várias correntes
teóricas, do pensamento clássico grego ao modernismo; líamos, refletíamos e
discutíamos sobre os mais variados pensadores, tais como: Marx, Nietzsche,
Freud, Sartre.
Esse ambiente de liberdade
intelectual se chocava com a hierarquia e pensamento eclesiástico. Na Igreja há
uma disputa de objetivos antagônicos, de um lado o carisma, o desejo de atuar e
evangelizar conforme fizera Jesus, e do outro lado o poder, a preocupação com a
influência política da Igreja no mundo, bem como seus bens matérias.
Outra contradição evidente da
Igreja se refere ao celibato, mas aprendi informalmente, que poderíamos
quebrá-lo vez ou outra, desde que isso não fosse descoberto e gerasse
escândalos entre os fiéis ou que atrapalhasse a missão que nos propúnhamos.
Esse pensamento não se dava de forma unânime entre o clero, e alguns padres não
se importavam com nossas “escapadas”, entendiam que isso nos ajudaria a decidir
melhor entre ser celibatário ou não; outros prezavam muito pela nossa vivência
do celibato.
Descobri com isso que os
padres mais moralistas, aqueles que mais se preocupavam com a vida sexual de
outrem, tendiam a ser os que mais tinham problemas nesta área, se podemos
chamar isso de um problema. Havia uma clara contradição entre o que se falava e
o que se vivia.
Essa contradição entre o que
se falava e o que se vivia se estendia às outras questões, como por exemplo o
combate da pobreza, pois nem todos os clérigos que defendiam com palavras uma
Igreja voltada para as questões sociais tinham uma prática de vida condizente com
seus discursos. E padres ligados a uma teologia mais conservadora e
tradicional, poderiam ser abertos às questões sociais.
Entretanto, embora houvesse
uma brecha em relação ao celibato, na maior parte de minha vida religiosa, ele
foi cumprido. O altíssimo desejo sexual ora foi reprimido ora sublimado por
meio dos estudos. Assim, a paixão pelos livros se sobrepunha aos desejos da
carne e fui impelido a buscar o saber, o conhecimento, conforme um amante que
procura todas as maneiras de conquistar a pessoa amada.
E tornei-me um filósofo,
obviamente não no sentido de ser um grande pensador, mas por ser uma pessoa
marcada pelo páthos (πάθος:
admiração, espanto, excesso, indignação, revolta, paixão, sofrimento), que move
o meu ser em busca da verdade e ajuda-me a construir e trilhar caminhos de
vida.
Era um admirador, seguidor,
crítico e inimigo de cada filósofo que estudei. Incorporava alguns pontos de
suas teorias, questionava e refutava outros. A paixão filosófica também fez com
que eu colocasse em xeque os dogmas católicos e as verdades religiosas
ensinadas por minha família. Dessas algumas foram mais difíceis de ser
transpostas, como por exemplo: o fato de a Bíblia ser escrita em linguagem
simbólica; outras foram facilmente negadas, como a não existência de um
personagem que personificava o mal, o diabo ou demônio.
Minha formação acadêmica se
construiu diante do desejo de conhecimento; um conhecimento que poderia iluminar
minha práxis a fim de que pudesse
contribuir de alguma forma para a construção de um mundo melhor. Assim, cursei
a faculdade de Filosofia, dentre outros fatores talvez por uma concepção
iluminista, acreditava que o conhecimento e a verdade poderiam libertar o ser
humano da servidão, da escravidão. E fiz o curso de Teologia, por fé no Deus
que tirou o povo da servidão do Egito e o conduziu a uma terra que mana “leite
e mel”.
Sou ordenado presbítero, e fui
trabalhar com o povo de Deus, aqueles que são os excluídos pela sociedade.
Minha vida como padre foi marcada por um extremo sofrimento dentro da Igreja devido
a dois fatores. O primeiro se deu devido ao fechamento da Igreja às questões
sociais e sua volta à grande disciplina. O segundo foi fruto da relação
estabelecida com meu superior, o bispo diocesano, que por ironia do destino foi
o mesmo padre que me levara ao seminário; fui por ele massacrado
psicologicamente, ouvia diariamente todos os tipos de humilhações e assédios
morais, em especial devido à minha opção pelos pobres e pela negação de uma fé
de aparências, descolada da realidade social. Essas ensinada por ele uma década
antes.
Porém, se houve sofrimento
intramuros da Igreja, houve muita alegria junto ao povo de Deus. Eu trabalhava
quase que vinte horas por dia. E conseguimos muitas coisas, tais como: creches
e escolas para as crianças; postos de saúde e um pequeno hospital; várias
cooperativas para aumentar os ganhos dos trabalhos e consequentemente diminuir
a sua exploração; firmamos parcerias com o governo federal e mandamos vários de
nossos jovens para as universidades...
Por três anos exerci o sacerdócio
até que dois dias antes da festa da páscoa, fui surpreendido por uma emboscada
a mando de grileiros e garimpeiros. Os jagunços dispararam contra meu carro 72
tiros.
Enquanto, as balas entravam em
meu corpo, ouvi uma linda orquestra angelical.... Deus, com um lindo sorriso e
um semblante idêntico ao de meu avô, pegou-me pela mão e chamou-me para a
morada eterna.
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